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Surreal, Buñuel gostava de vinho português e de cinema brasileiro

Cineasta espanhol que fez filmes com Salvador Dalí tem vida recontada em livro que compila cerca de 200 cartas

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Atriz Simone Mareuil no curta-metragem ‘O Cão Andaluz’ (1929), parceria de Buñuel com Salvador Dalí Divulgação

São Paulo

O diretor espanhol Luis Buñuel não se considerava um “homem da escrita”, por sempre depender de roteiristas, mas sua vida epistolar impõe nuances a essa imagem, como revela o recém-lançado “Correspondencia Escogida” (algo como "correspondência escolhida", sem edição no Brasil), organizado pelos professores Breixo Viejo (Universidade Columbia) e Jo Evans (University College London).

Datadas de 1909 a 1983, ano de sua morte, as cartas do acervo disperso do aragonês envolvem cerca de 200 correspondentes e totalizam mais de 700 páginas de fontes primárias, coletadas durante três anos de pesquisas. Publicada em Madri pela Ediciones Cátedra, a obra ganhará versão em inglês pela Bloomsbury, em 2019.

A correspondência expõe o universo familiar, os dias juvenis da amizade com o poeta Federico García Lorca e o pintor Salvador Dalí, o diálogo com o escritor surrealista André Breton, a alta e a baixa política de festivais de cinema e os bastidores de suas negociações com produtores de França, Estados Unidos, México e Espanha. 

Além de clarear a ética pessoal de Buñuel, a coletânea ainda recupera a voz direta de amigos frequentes em suas célebres memórias “Meu Último Suspiro” (1982).

Uma mensagem do cineasta brasileiro Glauber Rocha surge no final de uma carta do crítico e produtor americano Tom Luddy. 

“Querido don Luis: Espero que sua saúde seja eterna. Hoje estou indo para o Brasil depois de cinco anos de exílio. Sua figura vai iluminar meus passos”, escreveu Glauber, de passagem por Berkeley, em 21 de junho de 1976. Admirador do longa “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, Buñuel se encontrara com o brasileiro no Festival de Veneza de 1967.

A admiração de don Luis pelos filmes cinemanovistas é reforçada numa resposta manuscrita à revista italiana Cinema Nuovo, em setembro de 1967: “Exceto em Godard, não vejo nada novo nas novas ondas. A mais humana, a mais vigorosa, a meu juízo, é a brasileira”.

Perseguido pelo Estado Novo, o jornalista e memorialista brasileiro Paulo Duarte viveu um pedaço de seu exílio nos Estados Unidos, de 1940 a 1944, época em que trabalhou com Buñuel no departamento de propaganda antinazista do MoMA (Museu de Arte Moderna), em Nova York. 

Pouco conhecida, sua amizade com o espanhol envolvia a competição sobre quem era maior, se Camões ou Cervantes, e derivava para disputas gastronômicas.

Em fevereiro de 1945, numa carta ao músico Gustavo Pittaluga, Buñuel listou as provocações de Duarte no livro “Variações Sobre a Gastronomia” (1944), editado em Lisboa: “Diz que o vinho português é bom”; “gosta mais da cozinha suíça do que da espanhola”; “pessoalmente, o que mais me ofendeu foi dizer que as ostras portuguesas são as melhores do mundo”.

“A única coisa de bom gosto em sua obra é o seu respeito pela esplêndida paella que eu costumo fazer. Em resposta ao seu livro, estou preparando outro, cujo título é ‘Primitivismo do Paladar dos Brasileiros’, com um subtítulo que reza a influência francesa em certos povos rudimentares”, brincou o diretor.

Buñueliano virou um adjetivo e um estilo autoral, mas as últimas duas décadas da correspondência documentam algo já conhecido por historiadores: depois de “Um Cão Andaluz” (1929) e “A Idade do Ouro” (1930), o diretor só retomaria a autonomia no corte final de seus filmes a partir de 1959.

Nos anos 1960, beneficiado pelo impacto mundial da fase mexicana, que inclui as obras “Os Esquecidos” (1950) e “Ensaio de um Crime” (1955), Buñuel se fortaleceu nas negociações com diferentes produtores europeus e, nesse novo ciclo, intensificou o diálogo não apenas epistolar com o produtor francês de origem polonesa Serge Silberman e também o roteirista Jean-Claude Carrière (“predileto discípulo”), com quem adaptou “A Bela da Tarde” (1967). 

Os ficcionistas do boom latino-americano José Donoso, Julio Cortázar e Carlos Fuentes são outros correspondentes e aliados na circulação internacional de sua obra.

“O arquivo pessoal de Buñuel está na Filmoteca Española, em Madri, mas grande parte das cartas que compilamos no livro estão espalhadas em vários arquivos públicos e privados em diferentes países”, contam, por email, Jo Evans e Breixo Viejo, que garimparam missivas emocionadas dos diretores Jean Cocteau, Louis Malle e Carlos Saura, bem como dos atores Catherine Deneuve, Jeanne Moreau, Francisco Rabal (o mais íntimo) e Michel Piccoli.

Em maio de 1973, o italiano Federico Fellini envelopou elogios ao filme “O Discreto Charme da Burguesia”, ressaltando “a vitalidade, a natureza esplêndida, a fantasia impassível e perturbadora, o humor cruel e tão humano”. 

Fritz Lang, cineasta decisivo para Buñuel, comparece somente com uma fotografia autografada em Beverly Hills, em 1972: “Profundamente feliz de que ‘A Morte Cansada’ [1921] pudesse iluminar seu caminho”.

Pequenas passagens apresentam, com informalidade, o pensamento cinematográfico do surrealista. Em 1975, à equipe da cinemateca da Casa da Cultura de Puebla, batizada com seu nome, Buñuel definiu “o cinema não como uma vaca sagrada ou um objeto de museu, mas como algo vivo, libertador, que serve para romper os mecanismos convencionais de pensamento e cultura. A propósito, ‘cultura’ é uma palavra que não posso escrever sem corar”.

Coautor dos roteiros de “Um Cão Andaluz” e “A Idade do Ouro”, Dalí está presente nas duas pontas da vida de Buñuel, que reconhecia o pintor como um “autêntico gênio”, mas abominava sua adesão ao fascismo, sua cupidez e seu exibicionismo.

Em 1944, o livro “A Vida Secreta de Salvador Dalí” alardeou o ateísmo de Buñuel, alvo imediato de grupos católicos de Washington. Encurralado, o cineasta pediu demissão do MoMA. Deste ponto em diante, Dalí fracassou em todas as tentativas de retomar a parceria juvenil —o último apelo veio em 1982, quase quatro décadas depois do afastamento entre os dois.

“Gosto cada vez mais de ‘Um Cão Andaluz’. Não gostaria de fazer juntos [uma] segunda parte, mesma duração, com uma ideia que te fará chorar de alegria?”, quis saber Dalí, em julho 1965. Buñuel respondeu com um provérbio árido: “Água passada não move moinho”.

“A cada dez anos lhe mando uma carta com a qual não está de acordo, mas, insisto, esta noite eu imaginei um filme que podemos realizar em dez dias”, insistiu Dalí, em novembro de 1982. “Se você quiser, venha me ver no Castelo de Púbol”, escreveu. 

Dessa vez, Buñuel achou uma excelente ideia, mas se esquivou: “Estou fora do cinema há cinco anos e não saio mais de casa. Pena”.

A justificativa não era uma mentira absoluta. “Minha vida é de uma monotonia deliciosa [...]. Uma das taras da idade provecta é a falta de entusiasmo. Nada me interessa. Exceto a estéril ociosidade”, declarou Buñuel, bem buñueliano, ao produtor Eduardo Ducay, em 1975.

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