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Moda

Lagerfeld era super-herói da moda que tornou imortal tudo o que tocou

Estilista, morto na terça, foi responsável por tirar camada de mofo da Chanel e tornar usável hoje os códigos da francesa

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Não resta dúvidas que nesta terça-feira (19) não morreu um estilista, mas uma entidade. Falar da moda nos dias de hoje é, invariavelmente, cair no nome de Karl Lagerfeld. A mística em torno de quem a indústria chamava de “kaiser”, imperador em alemão, foi construída pelo próprio ao negar sua humanidade, idade, nacionalidade —“eu sou do meio do nada, um velho europeu é tudo o que sou”, disse— e as emoções, sempre escondidas por trás dos óculos escuros que nunca tirava por causa da “aparência de gato” dos olhos caídos.

 

Nem o mais “workaholic” dos estilistas dessa última geração chegou perto da locomotiva de ideias de sua mente doentia por trabalho, a única coisa que ele (alemão na certidão de nascimento, a quem interessar) dizia dar sentido à existência.

Só na Chanel, que deve a ele a sobrevida estelar após a morte de sua fundadora, fazia seis coleções anuais, na Fendi, outras duas, e na sua marca homônima, incontáveis. Não caberia numa página a revolução que ele engendrou no sistema da moda ao provar ser possível renovar ideias aparentemente datadas.

Explica-se. Quando Gabrielle Coco Chanel morreu, em 1971, sua grife entrou num limbo de tweeds, camélias e vestidos pretos do qual não saia. A camada de mofo já era espessa nos últimos anos de vida da criadora e só com a entrada do designer, recém-saído da Chloé e ex-estagiário da Pierre Balmain, o prêt-à-porter da marca atingiu uma audiência considerável.

Foi Lagerfeld quem tornou possível e usável para os dias de hoje os códigos criados pela estilista de alta-costura, que cairia no esquecimento não fosse a sacada do sucessor em encurtar os casacos —a “pequena jaqueta preta” ganhou até exposição—, usar pérolas como aviamentos, instituir o bicolor P&B como base da criação, transformar tweeds em obras de arte feitas à mão, redesenhar a bolsa de matelassê mais de 30 vezes.

Pode-se creditar ao estilista o uso de elementos de alta-costura no pronto a vestir. Quando pôs nas ruas em escala global toda a técnica do sob medida e seu requinte milimétrico, ele tornou menos impossível para mulheres de classe média poder lutar por um pedaço do glamour criado por Chanel. Sob sua tutela, a casa de moda, finalmente, deixara de ser apenas um nome de perfume.

De temporada em temporada, todos sabiam o que esperar da passarela de Lagerfeld. O tweed estaria ali, as camélias que a estilista tanto amava, também, e, evidentemente, os bordados mais glamorosos da moda.

Mas a graça de ver um desfile da marca era a certeza de que tudo seria diferente, todos os códigos apareceriam embalados em outras roupagens, cortes e pesos. Lagerfeld dava vida à roupa antiga, a matava na estação seguinte e, assim, produzia uma imortalidade espontânea da coleção.

Gênios, porém, não ganham a cultura pop sem a carga dramática de sua imagem pessoal. E Lagerfeld soube como poucos capitalizar e perpetuar a sua.

Entrou para os anais da moda a guerra declarada com Yves Saint-Laurent, ainda nos 1970, após ele se envolver com seu namorado e gigolô Jacques de Bascher (1951-1989). Como num xadrez, os dois estilistas disputavam o título de rei da moda, com alfinetadas públicas e panos quentes na alta sociedade parisiense.

Figura-chave dos primórdios da era da imagem e paparicado até por Andy Warhol, para quem atuou no filme “L’Amour” (1973), fez do combo leque, óculos, gola alta e rabo de cavalo o look oficial da elegância aristocrática francesa —por isso, não raramente, acreditava-se que o estilista era francês.

Quando emagreceu mais de 42 quilos no início dos anos 2000, foi taxativo ao contar que não fizera por motivos de saúde, mas para poder caber no look “skinny” criado por Hedi Slimane em sua passagem pela Dior.

Apesar de endeusado pelos fashionistas, nunca foi santo. Não poupava críticas a estrelas acima do peso –Adele foi vítima, em 2012, de seu desprezo por quilos extras– e causou uma saia justa no Oscar de 2017 quando Meryl Streep se recusou a usar um look feito por ele.

Na ocasião, disse que ela não vestiria Chanel porque não seria paga por isso. Streep rebateu, negou a acusação e ainda disse que o episódio “sujou” dua aparição no Oscasr e “eclipsou a ess ahonra aos olhos da mídia, dos meus colegas e do público”.

Até no Brasil o estilista teria descarregado o mau-humor. Comenta-se que quando veio lançar a exposição “Little Black Jacket”, em 2013, na Oca do Ibirapuera, obrigou toda a equipe a vestir preto e ficou no cercadinho VIP longe de qualquer contato com os fãs e a imprensa local.

E foi assim, à base de polêmicas, como a resistência em fazer uso constante de peles verdadeiras nos desfiles da Fendi —assim como a Chanel, a grife mantinha contrato vitalício com o designer—, desfiles apoteóticos no Grand Palais, sempre no último dia da temporada de Paris, e língua afiada, Lagerfeld se blindou de qualquer possibilidade de queda.

O mundo acompanhou boquiaberto sua capacidade inesgotável de prever movimentos, como no desfile em que criou um supermercado, em 2014, colocando definitivamente a estética urbana do “normcore” na moda de alto luxo, e abrir novas frentes para a moda.

Ainda que nos últimos dois anos sua tesoura tenha perdido o verniz contemporâneo de outrora, como se reciclasse a si mesmo em cada look desfilado, mantinha afiado o olhar para a juventude, lançando peças de apelo pop e galgadas no espírito urbano de luxo que sempre perseguiu.

Foi, por exemplo, o primeiro estilista de alta-costura a assinar uma coleção para uma rede popular, em 2004, numa colaboração com a varejista sueca H&M, e também o primeiro a levar, em 2016, um desfile de moda para Cuba, logo após a ilha ensaiar os primeiros passos de uma reabertura.

Lagerfeld dava sinais de cansaço. O controlador obsessivo já andava pouco pela passarela, mal ia a eventos, vetava entrevistas e alertou a moda de sua partida quando faltou pela primeira vez a um desfile de alta-costura da Chanel, em janeiro.

Mas não deixou os holofotes virarem mesmo no dia de sua morte. Partiu num espaço em branco do calendário de outono-inverno 2019-2020, um dia atipicamente vazio da programação de sete dias em Milão, cujo vácuo transformou a terça-feira em lamento e num dia só dele como tinha de ser.

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