Purpurina e visceralidade travam duelo nas feiras de arte de Nova York

Cores berrantes e revisão de performances históricas encerram inverno na cidade

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“Hustle Coat”, de Nick Cave, no Armory Show, em Nova York

“Hustle Coat”, de Nick Cave, no Armory Show, em Nova York Timothy A. Clary/AFP

Nova York

Duas tendências travaram uma queda de braço nas feiras de arte que fecharam o inverno nova-iorquino ao longo da semana passada.

Na Armory Show, na Independent e na Spring/Break, principais eventos na agenda de críticos e colecionadores do mundo todo que abarrotaram uma Manhanttan ainda gélida, os olhares se dividiam entre pinturas figurativas de cores berrantes com superfícies de ouro e néon e obras mais secas e minimalistas, que evocam a ideia de presença do corpo do artista aqui e agora.

Na contramão de quadros mergulhados em purpurina rosa-choque e visões de garotas de curvas lustrosas transbordando das telas, há um retorno às pinturas cegas, lisas e impenetráveis que marcaram o pós-Guerra e revisões de performances históricas de artistas que puseram a própria pele na linha de frente em atos ainda capazes de chocar. 

Um deles é a clássica performance “Shoot”, do americano Chris Burden. No auge da Guerra do Vietnã, ele pediu que um amigo atirasse em seu braço com um rifle dentro de uma galeria, filmando e fotografando cada instante da ação –o disparo, o sangue derramado e seus gritos de dor ecoando na sala.

O mesmo artista rastejou quase pelado sobre cacos de vidro, cortando o corpo todo, e se pendurou do teto nu e de ponta-cabeça, como uma carcaça de boi, ao som de um concerto de piano até que alguém o libertasse do suplício com uma machadada nas cordas.

Nos corredores da Armory Show, mais tradicional das feiras de Nova York que levou 198 galerias aos píeres do rio Hudson, fotografias raras dessas performances da década de 1970, no estande da Krinzinger, de Viena, destoavam dos trabalhos coloridíssimos, reluzentes e purpurinados da atualidade, peças que ensaiam um escapismo fajuto para denunciar um estado de histeria e de nervos à flor da pele.

Uma das mais escalafobéticas dessas instalações, a obra da americana Sadie Barnette, levada à Armory pela galeria Charlie James, de Los Angeles, recria uma sala de estar setentista, com a diferença que os móveis têm estofado de glitter e brilham sobre um tapete cor-de-rosa, mesmo tom das caixas de som que os rodeiam.

Não é uma casa de bonecas. Barnette alude ali ao seu lar de infância e ao pai, um dos mais aguerridos ativistas dos Panteras Negras, que lutou ao lado de Angela Davis pelos direitos dos negros americanos.

O contraste entre fantasia e mundo real, que parece se agravar a cada ano, é um reflexo nítido do impacto que os anos de Trump, brexit e agora Bolsonaro vêm exercendo sobre a imaginação dos artistas e as decisões do mercado de resgatar nomes e atitudes que podem render num momento de caos e incerteza na política.

Não se fala em outra coisa, aliás, a não ser dissolução dos limites entre verdade e mentira, fato e ficção, história e invenção. E a estética imediatista e exagerada das redes sociais, que se tornaram usinas de fake news na tela do celular, já domina as artes visuais. 

Uma série de artistas escalados por suas galerias para essas feiras nem disfarçam. Suas obras, que aludem à rica tradição de nomes como Jenny Holzer, Barbara Kruger e Alfredo Jaar, na verdade não passam de letreiros –de néon, é claro– banais e apelativos.

Registro da performance "Shoot", do artista Chris Burden, em 1971
Registro da performance "Shoot", do artista Chris Burden, em 1971 - Divulgação

Um deles, do britânico David Shrigley, vai direto ao ponto, na língua dos memes. “Meu trabalho é terrível e sou uma pessoa má”, ele escreveu em néon azul numa instalação mostrada pela Stephen Friedman, uma galeria de Londres.

Outra placa luminosa, do americano Sam Durant, prega “diga a verdade, mesmo que sua voz falhe”, as letras ali garranchos tão trêmulos quanto a erosão do discurso nessa atual era de deficit de atenção. 

Enquanto isso, na Spring/Break, um estandarte bordado do brasileiro Randolpho Lamonier, a melhor das obras nessa vertente das palavras de ordem, grita “o ódio está sem uniforme”, referência clara à subversão das bandeiras nacionais na escalada conservadora que varre o mundo todo.

Outras bandeiras no mesmo espaço da residência artística AnnexB na feira, entre elas uma toda negra de Carla Chaim e outras tombadas no chão, de Nino Cais, reforçam essa ideia de ícones surdos e violentos junto de imagens de uma performance do também brasileiro Mano Penalva, em que o artista desfila com um mastro sem nada na ponta. 

Mas o corpo ainda grita mais que as palavras. Não o corpo sofrido da performance de outrora, mas a representação despudorada do corpo em toda sua exuberância tátil. 

Na Independent, a austríaca Renate Bertlmann, que representa seu país neste ano na Bienal de Veneza, mostrava nada menos que consolos alados de acrílico e representações de mamilos em látex.

Esse mesmo plástico também dominava as obras criadas pelo coletivo americano Material Lust, um dos grupos convidados do evento, que revestem móveis de pegada modernista com essa pele artificial num tom bege padrão, como se sofás e mesas de centro fossem escravos sexuais.

Mas a mensagem mais sutil –e mais poderosa– data de cinco décadas atrás. Em 1969, Robert Morris rodou um filme para que fosse projetado no mesmo espaço onde foi criado, amplificando a experiência física de se estar num lugar naquele mesmo instante, como uma sala de espelhos replicada em celuloide.

Remontada na Armory, essa obra clássica do artista morto no ano passado resume a vontade de nossa era desconexa de pertencer a um lugar real, aqui entre quatro paredes.

O jornalista viajou a convite da Armory Show

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