Descrição de chapéu

Clarice Falcão faz dança da solidão com voz contida e humor sutil

É possível dançar com o novo álbum da artista, mas, na maior parte do tempo, é uma dança contida

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Tem Conserto

Os dois CDs anteriores de Clarice Falcão são fartos em sarcasmo, humor autodepreciativo, personagens gauche. Há graça em “Tem Conserto”, mas ela é mais sutil. E há dores fundas.

A instrumentação de “Problema Meu”, de 2016, é convencional no melhor sentido: sonoridade variada, de guitarras a quarteto de cordas, bons músicos e produção de Kassin. O som de “Tem Conserto” sai todo do teclado e das programações de Lucas de Paiva. A exceção é um contrabaixo em “Esvaziou”.

O processo íntimo espelha o tom das canções. É possível dançar com o novo álbum de Falcão, mas, na maior parte do tempo, é uma dança contida, uma dança da solidão, para citar Paulinho da Viola.

A depressão é tema explícito da terceira e da quinta faixas. “Morrer Tanto” traz o espanto que depressivos têm ao perceber que existe gente que se levanta todos os dias, “escova dente/ dirige carro/ arruma mala/ põe uma roupa/ e segue em frente”.

Em “Horizontalmente”, a narradora autobiográfica nem se levanta: “A minha aflição/ Quero ela aqui/ Juntinho de mim/ Na horizontal”.

Esse eixo do repertório é dado logo na abertura, em “Minha Cabeça”. A música gira, mântrica, retratando a mente que parece ter vida própria, sobretudo à noite, sobretudo quando a pessoa certa não está por perto.
Mas Falcão não põe o coração pela boca nessas gravações, não derrama a sangria dos sambas-canção e dos boleros. Tudo é econômico, quase gélido. O ritmo confessional das letras é contido pelos efeitos eletrônicos. O resultado é um distanciamento interessante entre a voz e os versos.

A Clarice Falcão que sofre de amor e solidão, mas sem perder o sarcasmo, está em “Mal pra Saúde”, alerta geral de que alguém é danoso como um cigarro. O clipe da música tem elementos visuais que remetem ao YouTube, ao Instagram e às conversas pelo WhatsApp. Sofrimento do século 21.

Na trinca de faixas preparadas para fazer dançar, os arranjos são coerentes com as letras. Em “Dia D”, a moça dá um tempo na depressão e parte em busca de sexo. Em “CDJ”, ela (ou ele) flerta com um DJ —e oferece duplos sentidos. E em “Só + 6”, entrega-se à boemia sem amanhã e com um tanto de autodestruição.

“Esvaziou” não tem graça nem dança. Retrata o buraco que se abre quando a pessoa amada se manda: “É que às vezes quando alguém vai/ Parece que ninguém ficou/ É que às vezes quando alguém vai/ Parece que esvaziou”.

O percurso termina apropriadamente com a faixa-título. “Com jeitinho até tem conserto/ Não sei como mas tem conserto/ Vai que eu sou o meu conserto”. Depois da tempestade vem a esperança, ainda que frágil. A dança é solitária, mas se está na pista.

O novo trabalho é conceitual, tem a mesma linguagem do início ao fim, diferentemente dos anteriores. É inevitável que soe algo monocórdio, que não comova tanto quando poderia, mas reflete uma artista que sabe o que quer.

Falcão sai um pouco mais da gaveta do humor, da qual começou a se afastar em 2016, quando deixou o elenco do Porta dos Fundos. Pode desagradar parte dos seus fãs, mas ganhar outros que têm mais idade e feridas no patrimônio.

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