Descrição de chapéu The New York Times

Em novo show, Madonna mostra que ainda corre riscos

Madame X reimagina o espetáculo pop para um palco de teatro e funde sua música mais recente a uma notável intimidade

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Jon Pareles
The New York Times

"Não estou aqui para ser popular. Estou aqui para ser livre", Madonna declarou a uma audiência numerosa e entusiástica na Howard Gilman Opera House, parte da Brooklyn Academy of Music, na noite da última terça-feira (17).

Era a estreia de sua turnê Madame X, que leva o nome do álbum que ela lançou em junho e disse ter sido influenciado pela música de Lisboa, a cidade em que está vivendo. O show segue o exemplo de suas décadas de espetáculos para grandes arenas mas adapta todo o arsenal que a acompanha —dançarinos! Figurinos! Vídeos! Coral!— à escala de um palco de teatro.

Ao contrário de musicais que servem como paradas de sucessos, a exemplo de "Springsteen on Broadway", "Madame X" é um show que se concentra em novas canções e no momento presente. Em outras palavras, Madonna continua a correr riscos. Ela só vai se apresentar em espaços tamanho arena em algumas paradas de sua turnê por oito cidades, mas fará temporadas muito mais longas em cada uma delas.

A Gilman Opera House tem 2.908 lugares, e ela fará 17 shows na sala, até 12 de outubro. No palco, vendendo uma selfie em Polaroid a uma fã, que por caso era Rosie O'Donnell, ela disse que "não estou faturando dinheiro algum com esse show".

O público chegou para o espetáculo avisado de que não poderia usar seus celulares. Smartphones e relógios inteligentes foram colocados em sacos selados na porta, mas não demoraram a ser recuperados depois do show. Isso ajuda a prevenir spoilers online; e certamente remove a distração causada pelo movimento de telas iluminadas (fotos não eram autorizadas, nem para representantes da imprensa).

 

Como álbum e como show, "Madame X" é a mais recente declaração por Madonna de uma identidade desafiadora, segura de si e flexível, por uma pessoa completamente confortável convivendo com dualidades: mãe atenta e aventureira sexual, católica omissa e exploradora de vias espirituais, amiga da festa e voz política, alguém que se autodescreve como "ícone" mas também como "soccer mom", americana mas, talvez mais que nunca, viajante do planeta.

Sim, ela tem 61 anos, mas sua música continua determinadamente contemporânea, com som de bateria eletrônica do trap, colaborações com vocalistas de hip-hop (Quavo e Swae Lee, vistos em vídeo) e o pop latino bilíngue, com jeito de reggaeton, às vezes chamado de urbano (cantado com o cantor colombiano Maluma, que aparece também em vídeo).

O show, cujo repertório vem em sua maioria do álbum "Madame X", estava repleto de pronunciamentos, símbolos e vinhetas enigmáticas para emoldurar as canções. Madonna chegou a usar um tapa-olho decorado por um X, o que sem dúvida poderia atrapalhar sua percepção de profundidade como dançarina.

Ao concluir sua segunda canção, ela já havia apresentado uma epígrafe do escritor James Baldwin —"os artistas existem para perturbar a paz"— datilografado no palco por uma das figuras recorrentes do show, uma mulher (em alguns casos Madonna mesma) sentada a uma máquina de escrever.

"God Control" começa com sons de tiros e avança do luto amargo por mortes causadas por armas de fogo a memórias felizes da disco music dos anos 1970, repleta de arranjos de cordas, enquanto Madonna e os dançarinos surgem em versões reluzentes de trajes da era da guerra da independência dos Estados Unidos, com chapéus tricornes enfeitados por plumas, mas terminam enfrentando policiais de choque equipados com escudos.

"Dark Ballet" faz referências a Joana d'Arc, traz uma montagem de imagens de catedrais góticas e padres assustadores, um trecho do "Quebra-Nozes" de Tchaikóvski no sintetizador e Madonna em combate corpo a corpo contra dançarinos mascarados, até que policiais a removem do piano sobre o qual ela estava. Os símbolos começavam a se acumular.

E mais estava por vir. Detetives de filme noir perseguem e interrogam a cantora em "I Don't Search I Find", mais uma canção com timbre disco; "Crave", que alerta que "meu desejo é perigoso", destaca um globo espelhado de discoteca. Um par de dançarinos robóticos mas sinuosos, com luzes vermelhas no lugar dos olhos, flanqueia Madonna quando ela se senta ao piano para a ameaçadora "Future", e o telão se enche de imagens de destruição urbana e ambiental.

Ela se cerca de um coral de mulheres usando roupas brilhantes com estampas geométricas árabes para "Come Alive", que emprega as castanholas metálicas e o ritmo em tercinas da música gnawa, do Marrocos, para apoiá-la em uma letra na qual Madonna uma vez mais rejeita opiniões e restrições indesejadas.

As canções de seu passado escolhidas por Madonna eram em geral exortações e contra-ataques, acoplados a declarações políticas abertas. Ela cantou uma parte de "Papa Don't Preach", revertendo a decisão de "vou ter o nenê", e depois falou diretamente em apoio ao direito ao aborto.

Dançando cercada por uma imagem de dedos em riste, ela cantou "Human Nature", que há 25 anos já falava sobre a tenacidade e determinação de Madonna de se expressar sem censura. No final da canção, suas filhas Mercy James, Estere e Stella subiram ao palco, e os cantores e toda a plateia cantaram "Express Yourself" sem acompanhamento.

O ponto alto do show foi sem dúvida "Frozen", uma balada sombria de "Ray of Light", álbum de 1998, que fala em cura. "Se eu pudesse descongelar seu coração, jamais nos separaríamos." Madonna surgiu no palco como um figura diminuta, cercada por projeções gigantescas em vídeo de uma dançarina que avançava de uma posição de autodefesa para uma abertura primeiro hesitante e depois plena, antes de recuar. Era Lourdes, a filha mais velha de Madonna, afirmando a conexão da família em forma de movimento.

Madonna vive desde 2017 em Lisboa, onde seu filho David joga futebol, e falou sobre saborear a música da cidade, a tradição portuguesa do fado e a música das antigas colônias portuguesas, especialmente as Ilhas Cabo Verde, perto do Senegal. Um dos fundos mais elaborados do show simulava uma casa noturna em Lisboa.

Mas apreciação não é sinônimo de domínio. Madonna foi acompanhada pela guitarra portuguesa de Gaspar Varela, neto da cantora de fado Celeste Rodrigues, em "Killers Who Are Partying", de "Madame X", uma canção sincera mas desconfortável, enraizada no fado. Também cantou um clássico de Cabo Verde, "Sodade", sucesso na voz de Cesária Évora.

Lembrando a audiência de que ela havia cantado essa canção no idioma creole de Cabo Verde e outras línguas, Madonna se vangloriou. "Esta garota circula. Esta garota faz a lição de casa." Mas nas canções mesmo, ela soava mais como uma turista bem intencionada.

Madonna parecia mais adaptada à batida pesada de "Batuka", uma canção baseada na tradição matriarcal do batuque, uma forma de música de chamado e resposta original de Cabo Verde. Acompanhada por mais de uma dúzia de percussionistas e cantores de batuque —Orquestra Batukadeiras— e com um rebolado digno do ritmo, Madonna conseguiu transmitir seu encanto com a descoberta, mesmo quando a percussão eletrônica substituiu o batuque manual.

O show de mais de duas horas envolveu 41 músicos, dançarinos e cantores, todos os quais passaram pelas mudanças de guarda-roupa características das grandes produções de Madonna (uma delas antes da execução de "Vogue", feita diante da audiência, encoberta por um biombo).

A cantora não estava no palco para um dos momentos de dança mais fortes, um intervalo entre atos quando uma fileira inteira de dançarinos avançou convulsivamente até a beira do palco, ao som de uma gravação de Madonna cantando "Rescue Me".

Madonna falou repetidamente com o público, tirando vantagem da intimidade do ambiente da sala para contar histórias sacanas, pedir desculpas pelo atraso no início do show e mais tarde tomar um gole da cerveja de um fã. Mas nas canções e falas de palco, ela às vezes parecia confundir idealização e realização pessoal com progresso social.

Contrastando liberdade e escravidão depois de "Come Alive", ela declarou que a escravidão "começa em nós", se esquecendo que o comércio escravista não é a mesma coisa que sermos "escravos de nossos celulares".

Mas com Madonna, o espírito vem mais de sons e imagens que de modo literal. "I Rise", a faixa final do álbum e do show, traz trechos de um discurso de Emma Gonzalez, que sobreviveu ao ataque homicida na Marjory Stoneman Douglas High School, em Parkland, Flórida, que vem seguido por uma letra canhestra.

Mas em um teatro acanhado, com um beat de gospel, imagens de protestos internacionais, uma bandeira de arco-íris e Madonna e sua trupe desfilando pelos corredores —perto a ponto de permitir que os fãs os tocassem—, a convicção parecia inegável.

Tradução de Paulo Migliacci

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