A mistura entre ficção e documentário tem sido tão comum no cinema nacional contemporâneo, que o formato proposto pela docuficção “O Corpo É Nosso!” é até mais tradicional do que o hibridismo de outros exemplares recentes, que borram mais esses limites.
No longa de Theresa Jessouroun, que já havia flertado com a encenação de crimes no seu documentário anterior “À Queima Roupa” (2014), o recurso ficcional surge como fio condutor ao espectador para um amplo olhar histórico à respeito da liberação do corpo da mulher brasileira. E também como um artifício para tentar angariar certa empatia da plateia, especialmente masculina.
O público é apresentado primeiro a um jornalista interpretado por Renato Goés, que é pautado a contragosto para uma série de reportagens sobre feminismos —sim, no plural, pois existem diferenças de pensamentos.
Ao mesmo tempo em que é confrontado com seu próprio passado nessa investigação, reexaminando as máculas do machismo e do racismo nele, este repórter faz grande parte da sua pesquisa a partir dos depoimentos de especialistas para um documentário da própria Jessouroun.
O exercício metalinguístico fornece, através das falas de antropólogos, historiadores, ativistas e outros profissionais, uma análise da representação do corpo feminino no Brasil, desde o século 19, centrada nas manifestações culturais do país, particularmente, a música e a dança.
A diretora toma o funk como ponto de partida para desmistificar uma visão conservadora sobre a imagem feminina e defender como uma mulher pode usar a exposição de seu corpo para reafirmar seu poder sobre ele. No entanto, se ele é um instrumento libertador, pode ser igualmente aprisionador.
Os efeitos adversos dessa liberação corporal são levantados somente no último ato, quando o longa aborda superficialmente o problema da objetificação e adentra no questionamento aos padrões de beleza que passaram a oprimir tantas mulheres a partir de então.
De forma diferente, o filme também vive o seu dilema para tentar firmar uma conexão entre sua parte documental e a ficcional, com esta se sustentando pelo elenco. Se há uma ligação, ela está nesse jornalista que deixa de ir a campo ao longo de sua matéria, tal qual o documentário carioca que se restringe ao estilo "talking heads", com entrevistas formais.
A escolha traz um didatismo esclarecedor para diferenciar as trajetórias do corpo das mulheres negras em relação às brancas neste processo histórico, mas carece de um olhar para outras realidades regionais e socioeconômicas na pluralidade que visa apresentar.
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