A literatura brasileira das últimas décadas parece cheia de autores que têm medo de sair na rua. De cruzar a cidade. Andar de transporte público. Beber em botecos. Conversar com gente da mesma cor de Machado de Assis. Passar à noite por encruzilhadas.
Encruzilhadas são esperanças, e parece haver uma em “O Corpo Encantado das Ruas”, do escritor e historiador carioca Luiz Antônio Simas. O livro foi a obra de não ficção mais vendida da editora Record na última Bienal do Livro do Rio de Janeiro —estado que, neste ano, mais registrou ataques a templos de religiões de matriz africana.
Encruzilhadas são possibilidades que se abrem, geralmente, em reação à barbárie que desumaniza corpos —o nosso e o das ruas. Dentro das páginas do livro está o que mais aflige as forças colonizadoras: cultura afro-brasileira, cultura indígena e o cotidiano das ruas do subúrbio, essa região/conceito que resiste
às imposições do “mercado”.
“O Corpo Encantado das Ruas” é, declaradamente, tanto uma obra parceira do “Einbahnstraße”, coletânea de ensaios com que Walter Benjamin, no início do século 20, pretendeu criar uma filosofia a partir da observação das ruas das cidades, quanto do clássico “A Alma Encantadora das Ruas”, de João do Rio, que celebra as ruas como o único espaço onde há reflexo e reflexão.
A capa imita a embalagem na qual são distribuídos, em homenagem a São Cosme e São Damião, doces à crianças, nos subúrbios das cidades. Dentro, 42 pequenos ensaios em prosa de raro sabor. São frases como “É a miudeza da vela que desvela a aldeia” ou “Garrincha driblou e foi driblado pela dor do mundo.”
Em tempos de cólera, pessimismo e letargia são características pequeno-burguesas. Os subúrbios, acostumados porque forjados na ira do mundo, reagem. Aconteceu antes, décadas atrás, com Nova York, Paris e Berlim. Agora é aqui. Luiz Antônio Simas é suburbano e carioca. “Carioca mesmo é quem não vai à praia”, disse Cartola quando perguntado sobre o sol e o sal. Faz uma década que Simas não vai a uma. Seu negócio é a rua.
No livro, aprendemos que, se ouvíssemos as ruas, saberíamos que no período da mudança de Império para República, a elite chamava os pobres de “a classe perigosa”. Que as pombagiras, entidades que representam a autonomia feminina sobre o poder do corpo, já eram piadas associadas ao o estereótipo da mulher descontrolada.
Ibêjis, Aluvaiá, quimbundo, quicongo, dindinha, farofa e fuzuê são palavras retiradas do livro que são deliciosas de falar em voz alta. É nossa ancestralidade matando a saudade delas, palavras feitas por nós, sob medida para nós. Mas experimente dizê-las em voz alta. O Brasil é um país disfuncional porque se pode tranquilamente gritar em público, na rua, as palavras “cupcake”, “reforma da Previdência” e “mindset”.
“O Corpo Encantado das Ruas” tem sumido das prateleiras com a mesma rapidez de sacos de Cosme e Damião no meio de crianças. De fato, estamos ainda na primeira infância quando o assunto é o Brasil que vem sendo invisibilizado para ser eliminado. Mas, nos ensina este pequeno livro, no fim do túnel há uma encruzilhada.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.