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Cinema

Obra-prima de Scorsese, 'O Irlandês' o revela como um anti-Coppola

Nas encenações da máfia, esses dois cineastas optaram por caminhos bem diversos

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O Irlandês

  • Quando Estreia nesta quinta (14) nos cinemas no dia 27 na Netflix
  • Elenco Robert De Niro, Al Pacino, Joe Pesci, Ray Romano
  • Produção EUA, 2019
  • Direção Martin Scorsese

Há um momento, em “O Irlandês”, em que Frank Sheeran, o irlandês em pessoa, diz a uma filha que tudo o que fez na vida foi com o objetivo de proteger a família. A frase parece roubada de “O Poderoso Chefão”, mas o sentido é bem outro: o de demonstrar o quanto a visão de Martin Scorsese sobre assuntos da máfia é distante daquela de Francis F. Coppola.

Isso, aliás, estava claro há muito tempo. A máfia de que Scorsese se ocupou sempre foi a dos pequenos gângsteres, uns pés-de-chinelo que se tomam por grande coisa por pertencerem a um grupo, por causa da companhia, até perceberem que não passavam de bucha de canhão de outros mais poderosos.

É um tanto diferente o que se passa em “O Irlandês”, em que pela primeira vez Scorsese opta por um tratamento realmente épico para a saga da organização criminosa nos EUA, ou de parte dela. Aqui estão envolvidos desde Frank (Robert de Niro), de início um ex-combatente que trabalha como motorista e faz pequenas trapaças para completar o orçamento. Logo ele se torna o protegido do temível Russ Bufalino (Joe Pesci), chefe mafioso da Pensilvânia, e parte de uma organização com que se envolvem até os Kennedy e Nixon, passando por Jimmy Hoffa (Al Pacino), o poderoso presidente do Sindicato dos Caminhoneiros. No caminho há outros, como Angelo Bruno (Harvey Keitel), chefão da Pensilvânia, e Anthony Provenzano, “caporegime” em Nova York.

Uma gangue da pesada, já se vê, numa organização em que Frank Sheeran era um raro não italiano. Essa gangue encontra, aliás, uma outra: a dos atores que acompanham Scorsese desde o começo de sua caminhada no cinema: De Niro, Pesci, Keitel, a quem virá se juntar, entre outros, Al Pacino.

A máfia vista por Scorsese não tem nada de romântica. Nem mesmo possui a cerebralidade dos Corleone. Ela é suja, baixa, sangrenta visceralmente. Mas não simples. E a narrativa passa pelas alianças provisórias, pelas lealdades movediças, que se fazem e desfazem ao sabor dos acontecimentos, das ambições de cada um e dos problemas que se apresentam.

O irlandês não é um homem de grandes ambições. Trata-se de uma figura secundária, de braço armado dos seus superiores, ou seja, um matador. Esse papel secundário faz dele um bom narrador. É quem conta a história.

Mas, junto com ele, cabe a Scorsese alternar o presente e o passado, uma personagem e outra, um local e outro —lembranças que desenvolve essencialmente ao longo de uma viagem de automóvel ao lado de Bufalino e com as respectivas mulheres no banco de trás do carro. Essa história cheia de realizações (criminosas, em geral) e percalços é narrada de maneira prodigiosamente clara, dada sua complexidade (e complicação também), por Scorsese.

Bem, Scorsese sempre foi um narrador exemplar. Desta vez ele se excede, seja ao detalhar as baixezas que caracterizam os grandes momentos dos gângsteres, ao descrever sem palavras um assassinato seco e vil, ou ao se deter nos diálogos cheios de não-ditos em que são pródigos esses supermarginais, ou ainda ao alternar as festas luxuosas (e sempre um tanto cafonas) com os bares um tanto infectos em que conspiram uns contra outros, em que se dão os seus grandes e em geral sórdidos arranjos.

Sim, Scorsese é, em tudo que diz respeito à máfia, um anti-Coppola. Mas também em relação ao ritmo esses dois cineastas optaram por caminhos bem diversos. Onde o andamento de Coppola ao tratar da máfia é elegíaco, em Scorsese é nervoso, como se quisesse chamar a atenção não à cerebralidade dos, digamos, Corleone, o de Scorsese parece voltar-se sobretudo à vitalidade, a essa força que impulsiona os seus personagens na aventura e que o levam, aqui, a compor uma de suas obras-primas.

Talvez, a exemplo de outras vezes, alguém censure ao cineasta nova-iorquino o excesso, ou antes, a duração longa do filme. É possível. Mas também pode-se dizer o mesmo dos romances de Dostoievski. E nem por isso...

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