Um ringue montado sobre uma gigante mesa torta. Entram para a briga um peru assado e uma espécie de boneco de Olinda de um homem narigudo. O embate. E o peru ganha a briga.
A sequência surreal faz parte da ópera “O Peru de Natal” e representa a vitória da felicidade, acesa pela comida como numa epifania, sobre a tristeza e a sobriedade do luto.
A obra do compositor Leonardo Martinelli com libreto de Jorge Coli, que estreia neste sábado (14) no Theatro São Pedro, em São Paulo, é inspirada no conto homônimo de Mário de Andrade, publicado em 1947 no livro “Contos Novos”.
Juca, o narrador do conto, transforma-se em Raul (o baixo Pedro Côrtes), que, junto da mãe, Maria Luísa (a meio-soprano Tati Helene), e da tia, Tidinha (a soprano Daiane Scales), planeja o primeiro Natal após a morte do pai.
A rebeldia do menino é esta: um peru só para os três, sem dividir com família grande em festa com convidados. Um peru, como diz o conto de Mário, “com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga”.
“O Peru de Natal” encerra uma trilogia de óperas de Coli baseadas em contos de escritores brasileiros.
O professor de história da arte na Unicamp e colunista da Folha conta que sonha ver as três obras, que são curtas, de um ato, encenadas numa mesma noite, como o famoso tríptico de Puccini, de 1918, inspirado na “Divina Comédia”.
Se em Puccini os temas são inferno, purgatório e céu, as obras de Coli remetem aos valores da Revolução Francesa.
“O Menino e a Liberdade”, de 2013, musicada por Ronaldo Miranda e inspirada em conto de Paulo Bonfim, remete à liberdade, “O Espelho”, de 2017, baseada em Machado de Assis e com música de Jorge Antunes, lembra a igualdade. “O Peru de Natal”, portanto, reenvia à fraternidade.
“A ópera termina com um Carnaval [que invade a ceia de Natal], há essa ideia da proximidade com os outros quando se tem a felicidade do compartilhar a bebida e a comida”, diz Coli.
A partir do texto, o compositor buscou “garimpar melodias dentro da poesia da língua”, diz Martinelli, que reforça a ideia de uma prosódia correta e compreensível —ainda assim, as apresentações terão legendas.
Ele diz que, embora tenha tido liberdade para compor, o libreto escrito por Coli sugere momentos musicais. Como quando, surpreendentemente, o funk invade a ópera.
O libreto não sugere o gênero, apenas mostra Tidinha, já bêbada, a abandonar o ar recatado de quem veio da Missa do Galo para engatar uma série de versos sobre o cabo Machado, “homem de sonhos”.
Martinelli conta que, numa versão anterior do libreto, havia a indicação de um maxixe. “Mas o maxixe é um código musical compreensível no século 19. Hoje, não é mais considerado subversivo ou tabu”, diz o compositor. “O funk pancadão vem num momento em que a personagem, ébria, mostra o que é, com sexualidade e até um vocabulário chulo.”
Neste momento do espetáculo, além dos tímpanos e do trombone, pode-se ouvir parte dos músicos da orquestra fazendo sons de batidas com a boca, o “beatbox”. Martinelli conta que a ideia veio dos instrumentistas da Orquestra Jovem do Theatro São Pedro.
O grupo, de músicos com idade máxima de 25 anos, é o responsável pela execução musical do espetáculo, junto dos da Academia de Ópera do teatro, que forma cantores líricos.
“Não sou o autor de 100% da obra. Isso é a história da ópera, que sempre foi de projetos a muitas mãos”, diz Martinelli.
A direção musical é de Miguel Campos Neto, regente titular da Orquestra Sinfônica do Theatro da Paz, de Belém, e a direção cênica, de Mauro Wrona, tenor e professor de prática de ópera da Escola de Música do Estado de São Paulo.
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