Três pontes devem ser atravessadas na leitura de “Eu, Tituba: Bruxa Negra de Salem”. A primeira une a cabeça da autora, Maryse Condé, uma negra de Guadalupe (república francesa no Caribe) nascida em 1937, com a voz de Tituba, uma negra nascida na segunda metade do século 17, em Barbados (nas Antilhas).
Uma, formada em literatura comparada pela Sorbonne e professora da Universidade Columbia, agraciada em 2018 com o New Academy Prize, prêmio alternativo ao Nobel, suspenso naquele ano por escândalos de assédio. A outra, analfabeta.
Pegamos assim a balsa das ilusões a que todo bom leitor se submete com prazer. E ficamos sabendo que a protagonista nasceu fruto de um estupro de um marinheiro inglês contra a sua mãe, uma escrava bonita trazida a bordo do Christ the King.
Pouco importa. Tituba ganha um padrasto, Yao, que cuida das duas. E quando a mãe, Aben, resiste a um novo estupro, desta vez pelo senhor das terras, e é enforcada, ele se mata engolindo a própria língua.
Estão vendo como estamos nos anos 1600? Quando a forca era o instrumento corriqueiro de execução dos condenados —e o suicídio menos complicado do que agora.
Tituba é criada por uma curandeira, especialista em ervas e em conversas com os seres que estão no outro plano. Man Yaya ensina tudo o que sabe à menina, que cresce numa cabana isolada, cercada por plantas de que necessita para trabalhar e de galos e galinhas. Quando eles fogem, ela se reencontra com a raça humana e passa a exercer seu saber em curas e consolos.
Nesse contato, apaixona-se por um escravo sedutor e fraco, que a conduz de volta à escravidão e à subserviência. Com ele, parte para os Estados Unidos pelas mãos de um novo senhor e inicia o calvário das três condenações: ser mulher, ser negra e ter conhecimentos de ocultismo.
Nesse ponto, somos convidados a atravessar a segunda ponte do livro, que foi lançado em 1986. A vida, em vez de ser imitada pela arte, intromete-se sem constrangimento na ficção. O reverendo que comprou Tituba e seu companheiro é um fracassado amargo, e serve de perfeito porta-voz do puritanismo.
Em Salem (Massachusetts), onde se instalam, até mesmo as crianças são inocentes úteis para as tramas de vingança de pais infelizes. E no melhor estilo “O Exorcista”, começam a fazer cenas de possuídas-pelo-demônio, afim de transformar Tituba e algumas senhoras do local em bruxas do mal.
Salem é um povoado atrasado, claro. Corre o ano de 1692. As ditas bruxas e bruxos são presos. Alguns, sobem ao cadafalso. Um dos homens é morto comprimido sob rochas em lento sofrimento. A respeito desse episódio, verídico, o dramaturgo americano Arthur Miller escreveu em 1953 a peça “As Bruxas de Salem”.
Tituba, que ainda não cumpriu seu carma integralmente, é solta na anistia do ano seguinte, após ter tido na prisão uma fraternal amizade com uma feminista de época.
Para pagar as despesas da cadeia e as correntes que a atam durante todo o período, é vendida para um comerciante judeu, viúvo com nove filhos. Torna-se babá e amante dele. E aí mais um povo oprimido e banido da raça humana sofre seu “castigo”: a casa é incendiada e todos os filhos morrem.
Em parte, talvez, por Benjamin Cohen ter pedido a Tituba para falar com sua esposa falecida. Nem sempre as pontes devem ser atravessadas e falar com os mortos só deve ser feito por necessidade.
A última ponte oferecida ao leitor é a de uma escritora que abertamente diz: “Não poderia escrever qualquer coisa a não ser que tenha uma importância política segura”. É a ponte da militância. A favor de todos os oprimidos —sejam negros, mulheres, judeus. Ou bruxos.
Em tempos de Me Too, quando assédio e estupro parecem se confundir nas mentes e nas leis, o livro vem trazer uma lição de objetividade e compaixão. Não é pouco.
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