Descrição de chapéu

Estética e discurso do vídeo de Roberto Alvim têm origem anterior ao partido de Hitler

Colocar uma cruz e a bandeira em cada ponta da imagem equivale a uma declaração sobre o mito nacional do Brasil

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É inegável que o ex-secretário da Cultura Roberto Alvim tenha praticamente plagiado o guru da propaganda nazista, Joseph Goebbels, no vídeo que provocou indignação Brasil afora.

As raízes da estética e do discurso do diretor teatral, no entanto, são bem mais antigas que o partido de Hitler. Remontam, na verdade, a uma onda nacionalista de 200 anos atrás que romantizou o passado e preparou o terreno para as atrocidades do século 20. 

Essa tendência, especialmente forte na Alemanha e em outros países europeus que só viraram Estados unificados como os atuais relativamente tarde, tinha como princípio a busca de uma identidade “espiritual” da nação, uma suposta essência eterna que unificaria todos os habitantes do território de modo quase místico, para que eles ficassem dispostos a dar sua vida em prol da nacionalidade. 

Essa lógica ajuda a entender a presença da chamada cruz missioneira (com dois braços) em destaque ao lado de Alvim no vídeo, com a bandeira nacional do outro lado do bolsonarista. 

Roberto Alvim, à esq., e Joseph Goebbels, à dir.
Roberto Alvim, à esq., e Joseph Goebbels, à dir. - Atelier Bieber/Nather/Bildarchiv Preußischer Kulturbesitz

Presente até hoje nos sítios arqueológicos que um dia foram povoados (missões) fundados por jesuítas para a catequização dos índios na região Sul do Brasil, esse símbolo tem associações históricas com as relíquias da chamada Vera Cruz (ou seja, a haste e a trave de madeira onde o próprio Jesus foi crucificado, pedaços das quais teriam sido preservados em diversos santuários da Europa, segundo a tradição). 

Vale lembrar que Vera Cruz e Santa Cruz estiveram entre os primeiros nomes associados ao Brasil recém-descoberto pelos europeus. Além disso, na Espanha, local de origem de muitos dos jesuítas do Sul, tal cruz também está ligada a tradições sobre a resistência cristã à invasão muçulmana na Península Ibérica. 

Colocar tal cruz e a bandeira nacional em cada ponta da imagem, portanto, equivale a uma declaração sobre a essência —ou, como o próprio Alvim diz no vídeo, o “mito nacional”— do Brasil. A cristianização pelas mãos dos jesuítas seria o elemento fundador da nação brasileira, incluindo aí elementos de cruzada contra “infiéis”.

Não é por acaso que bolsonaristas usem com frequência imagens de cavaleiros medievais em seus perfis de redes sociais, nem que os documentários do grupo Brasil Paralelo, que dão voz a releituras da história nacional feitas por intelectuais ligados ao bolsonarismo, tenham feito sucesso com a série “Brasil - A Última Cruzada”. O tom grandiloquente e heroico da fala de Alvim também se aproxima desses documentários. 

Existem ao menos duas grandes ironias nessa visão. A primeira é que ela só se fortalece em locais e épocas em que não existe acordo claro nem cultura comum definida entre os membros da suposta “nação eterna”. 

Um dos primeiros expoentes desse tipo místico de nacionalismo foi o filósofo alemão Johann Gottlieb Fichte, o qual, em 1807 e 1808, proferiu uma série de palestras em Berlim quando o imperador francês Napoleão Bonaparte estava invadindo a região.

Fichte sonhava com uma Alemanha unida justamente porque a área estava dividida em 41 principados diferentes, muitos dos quais resolveram se aliar a Napoleão. 

“A pátria, afirmava ele, era uma manifestação do divino, um depósito da essência espiritual do Volk [povo, em alemão] e, portanto, eterna. Os alemães precisavam estar prontos para morrer pela nação, a única coisa que dava aos seres humanos a imortalidade pela qual ansiavam”, escreve a historiadora britânica  das religiões Karen Armstrong, em seu livro “Campos de Sangue”. Note a semelhança com o pensamento do secretário exonerado. 

A segunda ironia é que essa forma de pensar a nação a transforma numa espécie de deusa, criando um culto político à nacionalidade que é praticamente religioso. Em um de seus textos, o chanceler Ernesto Araújo praticamente declarou isso com todas as letras ao afirmar que o bolsonarismo trazia “uma nação com Deus; Deus através da nação”.

No entanto, do ponto de vista da teologia cristã, isso se aproxima muito do gravíssimo pecado da idolatria: deixar de lado a adoração a Deus para adorar qualquer outra coisa —inclusive a nação. Isso deveria acender luzes de alerta para os cristãos que, em tese, predominam nas fileiras bolsonaristas. 

Outra questão importante é que, historicamente, é impossível impor as ideias sobre a unidade mística da nação a populações diversificadas sem violência. Visões sobre o caráter espiritual de uma nação são construídas ao longo do tempo e arbitrárias. A tentativa de implantá-las a todo custo quase sempre degringola em totalitarismo. 

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