A biografia “Simone de Beauvoir: Uma Vida”, de Kate Kirkpatrick, mostra a construção da vida da filósofa francesa a partir de seus diários e cartas, publicados postumamente.
Como as outras biografias se baseavam mais nas autobiografias, a nova permite uma melhor compreensão das dúvidas e do processo pelo qual Beauvoir se tornou Beauvoir. O título em inglês, “Becoming Beauvoir”, traz a importância da formação nunca finalizada.
A biografia tem uma proposta clara: compreender a vida de alguém é levar em conta os conflitos desse alguém na relação com os outros e com seu tempo. É isso que Kirkpatrick faz, mostrando uma Beauvoir humana, que se divide e se arrepende.
Mesmo que não caia em críticas moralistas à vida sexual de Beauvoir, a autora não foge à questão, mas a contextualiza, como quando indica que as relações que ela mantinha com menores de idade eram consensuais e, à época, legais na França —porém não as diviniza. Ela mostra ainda cartas nas quais a filósofa critica a si e a Sartre por não terem se questionado sobre o modo como traziam os alunos para suas vidas pessoais e sexuais.
Desde o início, a autora deixa óbvio seu objetivo, com citações de Virginia Woolf e da própria biografada: evitar encerrar uma mulher em suas relações com os homens. E, com base nas questões presentes desde os diários de juventude, a biografia tem o grande mérito de reconhecer Beauvoir como filósofa de pensamento próprio, que se faz em diálogo mas que nem por isso se confunde com o de outra pessoa —principalmente com o de Sartre.
Kirkpatrick não reduz Beauvoir a uma divulgadora do pensamento de Sartre, como boa parte da imprensa e algumas comentadoras fazem. Por isso, importante é mostrar seus pensamentos sobre a tensão entre o “fora” e o “dentro”, o modo como toda pessoa é vista pelos outros, e ao mesmo tempo como vivencia esse ser visto de forma própria.
Tais questões continuam a aparecer nos ensaios filosóficos “O Segundo Sexo” e “A Velhice”, nos quais ela pensa como as mulheres e os idosos são vistos pela sociedade e como, ao mesmo tempo, há a vivência singular e intersubjetiva dessas condições.
Há, contudo, momentos em que Kirkpatrick cai na armadilha que condena. Em algumas passagens do livro, a biógrafa fala do pioneirismo de Beauvoir em relação a Sartre. Na tentativa de mostrar a importância e a autonomia da filósofa, a autora se excede ao colocar que ela “pensou primeiro” que Sartre, como se fazer filosofia fosse uma corrida de cem metros, na qual o atleta que primeiro tira os pés do bloco é melhor em relação aos outros.
Ao entrar nessa disputa tola, algo comum a muitas comentadoras de Beauvoir, a biógrafa contribui, a meu ver, para incentivar o que ela mesma condena: encerrar uma mulher em sua relação com os homens. Felizmente, são poucos esses momentos.
Problemas maiores são os da edição brasileira. O mérito da rápida publicação no Brasil vem junto com uma edição apressada, com erros de ortografia e de tradução (na página 225, por exemplo, aparece que o livro “O Segundo Sexo” foi dedicado a Nelson Algren —quando o texto em inglês diz que foi a Bost a dedicatória do livro).
Além disso, há uma decisão de tradução que enfraquece a tese da biógrafa: ao optar por ignorar os gerúndios do inglês (Becoming, no título, e growing, no primeiro capítulo), perde-se a ideia da construção contínua de uma vida, da ênfase maior ao processo do que ao resultado final.
Mesmo com esses problemas, é uma biografia que deve ser lida. Sem cair em simplismos, sem reduzir a vida de Beauvoir a suas relações sexuais com homens e mulheres, mas também sem ignorar essa parte de sua vida, a biografia acompanha e busca compreender de forma mais rica a vida da filósofa francesa.
Ao trazer as cartas e diários tornados públicos há pouco tempo, Kirkpatrick consegue mostrar Beauvoir como uma importante filósofa do século 20 e uma mulher fundamental para nossa época.
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