Nunca um filme brasileiro indicado ao Oscar foi tão esculhambado como "Democracia em Vertigem". Nas redes, teve gente que postou entrevistas da documentarista Petra Costa apenas para poder xingá-la. O presidente Jair Bolsonaro disse que o documentário é bom para quem gosta do que urubu come. Em entrevista recente, o jornalista Pedro Bial chamou o filme de ficção alucinante.
Posso dizer que há inconsistências sobre questões econômicas, área em que atuo.
Petra atribui o crescimento do Brasil na primeira década deste século à consciência social do então presidente Lula. Não há como negar que sua capacidade de articulação e o efeito de políticas públicas, como o Bolsa Família, transformaram para melhor os rincões e as periferias urbanas do Brasil. Mas Lula deu sorte.
Boa parte da pujança era sustentada pelo chamado boom das commodities –o exponencial aumento de preços de matérias-primas no mundo, impulsionado pelo consumo chinês. Ele irrigou o agronegócio, setores de minérios, óleo, gás e, por tabela, toda a economia brasileira.
Mais para frente, cenas sugerem que Dilma foi escanteada da Presidência da República simplesmente por se opor aos poderosos. Ela teria tido a coragem de reduzir, na marra, os juros altos dos bancos, por exemplo. Essas leituras são retratos românticos e incompletos sobre os fatos da época.
Nada disso, porém, importa.
"Democracia em Vertigem" não foi feito para ser uma tese acadêmica de história. É uma primorosa e sensível reflexão sobre esse nosso Brasil, o país aprisionado pela corrupção –da política, dos negócios, das ideias, de valores.
Para quem tem mais de 50 anos e um mínimo de autocrítica com espírito de cidadania, o documentário equivale a um atestado de fracasso. Como pode uma geração queimar décadas de exercício do voto na urna para dar uma guinada de 360 graus e voltar ao ponto de partida: ir do fim da ditadura à eleição de um admirador de ditadores? Onde erramos? O que estamos deixando para nossos filhos?
O filme tem inquestionáveis atributos técnicos. Roteiro, montagem, fotografia. É belo. Detalhista. Provocativo. Mas, acima de tudo, tem narrativa. Conta uma história. Tem cenas inéditas. Bastidores.
E Petra dá a palavra a todos. Lula, Dilma, Aécio Neves, Eduardo Cunha, Michel Temer, Bolsonaro. Dá a palavra aos dois lados da rua nos protestos. Aos que vestem verde e amarelo. Vermelho. Chinelo de dedo. Echarpe.
O documentário-memória de Petra cumpre de forma primorosa a proposta pessoal de sua autora: retratar a intensidade do recente racha brasileiro, esse racha que está entre nós, com consequências ainda imprevisíveis.
Talvez o fato de o filme atrair a enxurrada de críticas desmedidas, de um lado, e os cegos relatos apaixonados, de outro (sim, há gente que adora e torce pelo filme no tapete vermelho), sejam consequências dessa missão cumprida pela moça de voz frágil.
Sim, a voz da narradora é frágil. E daí? Por que a voz precisa ser grossa e empostada para ser boa?
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