Maior prêmio da arquitetura, Pritzker reconhece dupla de mulheres pela primeira vez

Irlandesas Yvonne Farrell e Shelley McNamara, do Grafton Architects, venceram com obras que atualizam o brutalismo

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Institute Urbano da Irlanda

Institute Urbano da Irlanda Ros Kavanagh

São Paulo

Feitas por mulheres, mas sem explícitos traços de delicadeza. À primeira vista, aparentam ser edificações brutas, talvez mesmo musculosas. Contudo, quem permanece nessas construções presencia momentos de ternura. Os projetos arquitetônicos das irlandesas Yvonne Farrell e Shelley McNamara, as vencedoras do prêmio Pritzker deste ano, não se encaixam em estereótipos fáceis de autoria feminina.

A principal láurea da arquitetura havia sido entregue pela última vez a uma mulher há três anos, quando a espanhola Carme Pigem compartilhou a honra com seus sócios homens do RCR Arquitectes. É preciso voltar até 2004, quando Zaha Hadid recebeu o Nobel arquitetônico, para rememorar a então única vez que o sexo feminino tinha sido exclusivamente agraciado em uma edição.

O Pritzker tem uma problemática com gênero desde 1991. Na ocasião, Denise Scott Brown foi esquecida na vitória de seu sócio e marido Robert Venturi, apesar de assinarem juntos vários projetos e livros.

A escassez de premiadas talvez tenha compelido à tentativa de mea culpa no discurso dos jurados deste 42º ano de prêmio —as arquitetas chefes do escritório Grafton Architects são avaliadas como “pioneiras” e “faróis para outras mulheres”.

Entretanto, até meados da década passada, poucos no meio arquitetônico notavam o trabalho de Farrell e McNamara. Vivendo em Dublin, estavam longe dos holofotes das celebridades; não tinham relevância política nem mesmo no próprio país; pouquíssimos projetos haviam sido publicados e nunca pretenderam ser notáveis teóricas.

O protagonismo recente se deve ao impactante projeto da Universidade de Engenharia e Tecnologia em Lima, no Peru, e pela organização da última edição da Bienal de Arquitetura de Veneza, há dois anos, batizada "Freespace".

O edifício educacional na América Latina emergiu como uma grande surpresa a ocupar capas de revistas de arquitetura em todo o mundo. Não era à toa. A gigantesca edificação é pitoresca —uma mescla de fundo de arquibancada de estádio velho de futebol com, do outro lado, uma profusão de volumes escalonados com diferentes dimensões e formatos.

Ao mesmo tempo vertical e comprido, o projeto tem um inesperado frescor. As arquitetas irlandesas apresentavam algo de inédito no antigo —e, para muitos, démodé— glossário do brutalismo arquitetônico.

Circular por dentro do centro universitário peruano equivale a atravessar um labirinto de escadas, passarelas, terraços, balcões, guarda-corpos, pilares, vigas —uma sobreposição de diferentes formas que se unificam no predominante concreto aparente.

As estruturas parecem ter dimensões excessivas. Os espaços de conexão entre laboratórios e salas de aula não são pragmáticos. As arquitetas exageraram de propósito nos tamanhos das circulações para dar ênfase aos espaços de interação e convivência.

Esse aspecto do projeto do Grafton Architects acabou reaparecendo de modo mais explícito no conceito que orientou a sua Bienal de Veneza. Era a primeira edição pós-eleição de Donald Trump e, numa contraposição aos ventos conservadores pelo mundo, a dupla irlandesa adotou um discurso alinhado de forma explícita a Barack Obama, o inquilino de saída da Casa Branca.

Estimulou os participantes da mostra a demonstrarem valores do tipo: “O papel da arquitetura é dar abrigo aos nossos corpos e elevar nossos espíritos”. Em tom de campanha eleitoral aparecia também: “Nós acreditamos que todos têm o direito de se beneficiar da arquitetura”.

Exemplificam a ideia de “espaço democrático, não programado e livre para usos ainda não concebidos” com o vão livre do Masp de Lina Bo Bardi. E, tal como num manifesto, repetiam o início de vários parágrafos com o título daquela Bienal, "Freespace", ou espaço livre, para defenderem as “qualidades essenciais da arquitetura que incluem a modulação, riqueza e materialidade das superfícies; a orquestração e sequenciamento do movimento”.

Outro lema usado com frequência pela dupla é ter a “Terra como cliente”. Em entrevista ao jornal The New York Times, Yvonne Farrell alertou que muitas arquiteturas excluem fenômenos naturais, por isso “é importante lembrar que a Terra é bela e a luz do sol é ouro líquido”.

É possível interpretar tais falas como platitudes ou bom-mocismo exacerbado, porém são coerentes com os projetos de Farrell e McNamara. O mais recente, aberto no começo do ano, é a Town House da Universidade de Kingston, em Londres, que mistura atividades de biblioteca e praça pública sem divisórias no interior do edifício.

Em Milão, haviam projetado a Universidade Luigi Bocconi, inaugurada em 2008. O prédio tem o tamanho de um grande quarteirão e parece uma rocha imensa. A maior surpresa está na relação entre o foyer do auditório e a calçada da rua —remete a uma gruta ou, já que é um vínculo puramente visual, a melhor metáfora talvez seja de um presépio.

Pelos exemplos dados fica patente que o Grafton acabou por se especializar em edifícios universitários. Além de um designo funcional, há um caráter pedagógico nos ambientes projetados. O escritório também tem, prontos ou em obras, projetos para faculdades em Dublin, Limerick, também na Irlanda, Toulouse e a Escola de Economia de Londres, que tende a ser a próxima obra-prima.

Outra evidência do didatismo da dupla é a contínua atuação como professoras. Passaram pelas universidades Harvard e Yale, nos Estados Unidos, Lausanne e Mendrisio, na Suíça, após décadas lecionando na University College da capital irlandesa, a mesma faculdade onde se conheceram e se formaram. Dali em diante, não demorou muito para fundarem o escritório em 1978 com um modelo de trabalho que mais parece uma cooperativa.

O júri do Pritzker composto por figuras como o curador do MoMA, Barry Bergdoll, e o embaixador brasileiro, André Corrêa do Lago, ressaltou “o profundo entendimento do espírito do lugar” de Yvonne Farrell e Shelley McNamara e, em seguida, destacou que “seus edifícios são bons vizinhos”. O melhor indício disto está no nome do escritório das vencedoras —Grafton é a rua dublinense onde começaram a projetar juntas.

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