Descrição de chapéu Livros

'Guerra e Paz' parece difícil, mas é uma novela das nove, diz Fernanda Torres

Quarentena abre oportunidade para encarar clássico que todos conhecem, mas nem tanta gente lê

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São Paulo

“Guerra e Paz”, do russo Liev Tolstói, é daqueles clássicos incontornáveis que todo mundo conhece, mas nem tanta gente de fato lê —muito pelo ar de desafio imposto pelas cerca de 1.500 páginas do tomo novecentista.

O contexto da quarentena, que abre um espaço sem precedentes de tempo ocioso na agenda do mundo todo e susta o lançamento de obras inéditas por editoras, tem oferecido uma oportunidade preciosa para finalmente encarar essa e outras obras monumentais que construíram o fundamento da literatura que temos hoje.

Conforme conta um relato da revista The Economist, a escritora chinesa Yuyin Li teve a ideia de montar um clube do livro virtual —projeto apelidado de #TolstoyTogether— para que leitores ao redor do mundo desbravassem juntos o livro de 1865, ajudando a suportar estes tempos de tanta tensão. Qual não foi sua surpresa ao ver que o grupo acabou reunindo mais de 3.000 pessoas.

A escritora e atriz Fernanda Torres, colunista deste jornal, abraçou a mesma empreitada um pouco antes da deflagração da pandemia, no começo deste ano.

Na conversa transcrita a seguir, ela divide suas impressões sobre uma obra que considerou acessível, historicamente instrutiva e com ritmo de novela das nove. E reflete sobre as razões pelas quais o clássico tem angariado tanta atenção na era do coronavírus.

Você tem que ter um tempo para encarar esses tijolos da literatura, um tempo que não existe mais na vida de hoje. Eu li quatro volumes do “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust, enquanto estava grávida. É uma espécie de quarentena, a gravidez. Você fica ali já fazendo um filho, não precisa fazer mais nada. Quando eu pari, nunca mais consegui voltar.

Há uns cinco, seis anos, fui dando conta dos Dostoiévski que não tinha lido, li também “Os Miseráveis”, e em todos esses livros a questão do Napoleão é muito premente. Uma hora parei e falei, não posso viver sem entender direito quem é Napoleão —porque a gente sabe só meio de folclore.

Li duas biografias dele para entender o que aconteceu no mundo naquele momento. Ficou me faltando “Guerra e Paz”. Ficou ali na minha estante. E a história do livro é a grande virada na vida do Napoleão, é a hora que ele se dana. Sempre as pessoas citavam, “Hitler foi igual a Napoleão, invadiu a Rússia e se danou no inverno”.

E o que é maravilhoso do “Guerra e Paz” é que é uma reconstituição histórica romanceada, tem até a audácia de botar fala na boca do Napoleão.

Primeiro de tudo, não é difícil como o “Em Busca do Tempo Perdido”, que exige um esforço intelectual. “Anna Karenina”, por exemplo, achei muito mais duro, mais difícil de ler. “Guerra e Paz” é uma novela, com amores, viradas, traições. Vicia.

E a linguagem é totalmente acessível. Totalmente. A única questão é a dos nomes, como todo mundo sempre me dizia. Ele apresenta um panorama de várias famílias russas, nobres e abastadas, antes da invasão do Napoleão. Até você dominar essa árvore genealógica, você apanha, então como eu já sabia disso, fui lendo e anotando os nomes.

Porque senão, quando você finalmente domina as famílias, vê que perdeu muito para trás. Então eu aconselho a fazer isso, para saber que a Anna Pavlovna é a mãe do fulano, que fulanos são os filhos do fulano, porque eles todos se visitam.

E assim, uma hora ele chama o cara de duque, depois é o sobrenome, depois é o primeiro nome, e o nome do meio que é referência ao pai. Uma vez que você domina isso, é uma novela das nove da melhor qualidade.

Ainda por cima, o Tolstói romanceia batalhas históricas inteiras que foram cruciais para Napoleão, como a de Austerlitz. Eu entendi muito melhor no “Guerra e Paz” como foi a entrada do Napoleão na Rússia do que na biografia. Porque ali era frio, esquemático. E no livro você lê com a emoção dos fatos, sai apaixonado pelo Kutuzov, o general russo.

E em determinados momentos entra em cena o Napoleão. E ele fala, cara. Eu acho uma coisa extraordinária ter a coragem de fazer isso.

Outra coisa incrível é o incêndio de Moscou. Segundo o livro, Napoleão não ateou fogo na cidade, ela pegou fogo porque a população abandonou Moscou e os soldados, com frio, fizeram milhares de fogueiras. Não foi uma ordem, foi esse movimento do qual ninguém é dono.

A descrição de quando eles fogem de Moscou e veem ao longe a cidade queimando é linda. Na biografia, era contada como se Napoleão mandasse tocar fogo em Moscou.

O livro tem uma grande teoria, a de que as guerras não são ganhas por heróis e generais. Os grandes movimentos históricos são feitos pelas pessoas comuns, e a guerra se faz por ela mesma.

O último capítulo, o mais duro do livro, é uma espécie de epílogo em que o Tolstói faz essa teoria da guerra dele. Ele ataca a ideia de que foi por causa do Napoleão que a história se moveu. Tolstói diz que é uma tendência incontrolável dos povos se mover para o ocidente, para o oriente. Depois eu fui ler, algumas pessoas acham a ideia rasa, superficial, outras nem tanto.

Com “Guerra e Paz” eu fechei o Napoleão, se é que se pode fazer isso.

Agora se as pessoas estão lendo esse livro por causa do momento que estamos vivendo, não sei. Acho que isso acontece mais porque é um livro icônico. Por ter dois volumes, as pessoas acham que é difícil de ler. E, como é uma novela apaixonante dessas, uma vez que elas têm tempo para começar, não largam.

Fiquei pensando se tem a ver com alguma semelhança com o momento de agora. Realmente, o livro trata de pessoas que são obrigadas a mudar sua vida do dia para a noite. Nesse sentido, tem algum paralelo, de como a gente se reinventa na adversidade. Mas eu sinceramente acho que não é isso.

O título até pode atrair as pessoas porque acham que estão vivendo um período assim, mas estamos vivendo um momento histórico muito diferente. A guerra que vivemos não tem grandeza. É microscópica.

Se bem que o Napoleão não era alto.

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