Descrição de chapéu The New York Times

Russos entediados postam paródias divertidas de arte, e o mundo adere

Grupo no Facebook, Izoizolyacia, tem 540 mil membros e combina palavras russas para 'artes visuais' e 'isolamento'

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Anton Troianovski
Moscou | The New York Times

Em confinamento, o banal e o sublime se confundem.

Uma salsicha se transforma em rosa. Uma tangerina, em girassol. E quando seu filho adolescente não limpa o quarto, o caos que ele deixa pode, só desta vez, se transformar em algo parecido com um quadro de Wassily Kandinsky.

Isoladas do mundo físico, as pessoas que estão confinadas em casa por causa do coronavírus estão buscando conexões online mais profundas. Muitas delas têm muito tempo de sobra, ou filhos a entreter. E, em meio ao desânimo gerado pela pandemia, algumas parecem estar passando por picos de criatividade.

Talvez isso ajude a explicar por que um grupo de Facebook criado um mês atrás para que as pessoas postem suas recriações caseiras de quadros famosos já tenha chegado aos 540 mil membros. O grupo foi criado em Moscou por uma gerente de projetos de uma empresa de tecnologia, e o idioma predominante é o russo, embora mais de um terço dos integrantes não vivam na Rússia.

Os participantes vêm publicando mais de mil reproduções criadas por eles a cada dia, em cada caso anexando uma foto de sua recriação a uma imagem da obra de arte original.

Pessoas de suas famílias, animais de estimação e objetos de uso caseiro se tornaram recursos para canalizar imagens emblemáticas e também trabalhos mais obscuros, entre os quais grande número de reproduções de obras de Edvard Munch e Frida Kahlo.

Coisas como um tubo flexível de ar condicionado, uma colagem com garfos plásticos, um anel formado por rolos de papel higiênico quase vazios, encaixados uns aos outros, se tornaram parte das recriações.

Em peças recriadas, os três itens citados acima foram usados para capturar a graça e o mistério de uma gola decorativa em um traje renascentista.

“As ruas vazias deixaram de parecer reais”, disse Katerina Brudnaya-Chelyadinova, 38, a criadora do grupo, descrevendo a mudança em sua percepção da vida. “A realidade agora é nossa casa e a internet.”

O nome do grupo, Izoizolyacia, combina as palavras russas para “artes visuais” e “isolamento”.

Depois de descobrir o grupo, Julia Vasilenko, professora de piano em New Haven, no estado americano de Connecticut, não se limitou a tentar recriar os detalhes visuais de uma pintura, tentou lhes conferir um novo significado.

Ela escolheu “Composição 6”, do mestre do abstracionismo russo Kandinsky, e usou o quarto bagunçado de seu filho como cenário. Ela posicionou címbalos, um violão e um barco de brinquedo em meio à bagunça para simbolizar os motivos musicais e marinhos presentes no trabalho de Kandinsky.

Uma luva de borracha azul serve como lembrete ao espectador sobre os dias que estamos vivendo. O filho dela é um vulto em meio às sombras.

“Um desastre grandioso, ocorrendo objetivamente”, disse Kandinsky sobre sua pintura, “é semelhante ao hino de uma nova criação”. Em menção ao coronavírus, Vasilenko citou essas palavras em sua postagem no Facebook e disse que ela e a família estavam “unidas a Kandinsky no otimismo”.

Em Riga, na Letônia, vasculhando o Pinterest, Daria Grigorieva descobriu um tema mais sombrio na pintura soturna de Vasily Vereshchagin sobre uma pilha de crânios em um campo de batalha, intitulada “A Apoteose da Guerra”.

Grigorieva, 37, que cresceu em São Petersburgo, na Rússia, recorda o momento em que encontrou o quadro e percebeu os crânios empilhados. “Exclamei, em voz alta, que eles eram parecidos com 'pelmeni'” —uma espécie de bolinho salgado russo.

Ela trabalha como decoradora de cerimônias de casamento e, sem casamentos a decorar, já estava montando uma coleção de recriações de arte, às quais deu o nome de “izolyashki” —uma palavra inventada derivada do termo para isolamento.

Para recriar o quadro de Vereshchagin, ela empilhou alguns bolinhos que tinha no congelador em uma mesa, diante de seu papel de parede azul, e postou a imagem no grupo, sob o título “A Pelmeniose do Isolamento”.

Trinta minutos mais tarde, um comentarista afirmou que “muita gente associa esse quadro especificamente aos pelmeni”. Ela recebeu uma captura de tela mostrando outra pilha de bolinhos congelados.

Uma busca nos arquivos do grupo de Facebook mostra que integrantes recriaram o quadro de Vereshchagin pelo menos 34 vezes neste mês, representando os crânios com materiais tão diversos quanto rolhas de vinho, batatas, pipocas, sacos de lixo, cascas de ovo e ossos de galinha.

Um empresário ucraniano empilhou 210 rolos de papel higiênico e intitulou seu trabalho “A Apoteose da Quarentena”.

Brudnaya-Chelyadinova disse que ela e os amigos começaram a recriar obras de arte como distração, diante das notícias deprimentes. Em 30 de março, eles criaram o grupo no Facebook para coligir seus trabalhos e permitir que outras pessoas participassem.

Naquele mesmo dia, as medidas de confinamento entraram em vigor em Moscou e restringiram até mesmo caminhadas solitárias, com exceção de uma licença para levar os animais de estimação para passear a uma distância de menos de cem metros de casa.

A brincadeira de copiar obras de arte não é nova, e diversos museus, entre os quais o Getty, de Los Angeles, e o Rijksmuseum, de Amsterdã, estão encorajando os fãs de arte aprisionados em casa a enviarem fotos de seus esforços para recriar seus quadros favoritos. Uma conta de Instagram na Holanda, Tussen Kunst & Quarantaine, que também está recolhendo recriações de arte durante o período mundial de confinamento, tem mais de 239 mil seguidores.

Mas, em termos de seguidores no Facebook, a audiência do grupo de Brudnaya-Chelyadinova é a mais participativa.

Já houve mais de 32 mil postagens no grupo, ela disse, cada qual revisada por ela ou um integrante de um grupo de cerca de 15 amigos para garantir que não violem as muitas regras do grupo, entre as quais a proibição do uso de Photoshop, de críticas ou de imagens registradas fora de casa.

Retratos de políticos são desencorajados, o que talvez explique por que o grupo tem seguidores em todas as áreas do espectro político. Estatísticas compiladas pelo Facebook e divulgadas por Brudnaya-Chelyadinova mostram que, embora 200 mil dos membros do grupo vivam na Rússia, o país com o segundo maior número de membros —mais de 80 mil— é a Ucrânia. Os Estados Unidos têm 41 mil integrantes.

“Esse é um lugar sem política”, disse Lidiia Petrova, 26, designer gráfica em Kiev, na Ucrânia, sobre o grupo. Ela se envolveu num lençol para recriar “Ariadne Abandonada por Teseu”, de Frederic Leighton.

Assel Adambayeva, de Almaty, no Cazaquistão, deixou seu emprego como contadora em fevereiro para abrir uma empresa, mas a pandemia a forçou a cancelar esse plano. Ela posou de azul, como a “Bebedora de Absinto”, de Picasso. Adambayeva disse que as pessoas da antiga União Soviética estavam acostumadas a encontrar significado na arte, em períodos difíceis.

“Estamos em crise por toda a minha vida”, disse Adambayeva, 44. “Você precisa se distinguir de alguma maneira.”

Em Israel, Michael Lobzovsky, que trabalha com logística e emigrou da Ucrânia 20 anos atrás, vê o grupo tanto como uma chance para “alimentar o próprio ego” quanto como um recurso para se manter em contato com o mundo de fala russa. Além disso, Lobzovsky, 51, tem uma arma secreta em sua casa perto de Jerusalém –Gorynych, sua cobra de estimação.

Em sua peça mais recente, Lobzovsky brande uma concha de sopa contra Gorynych, como em “Hércules e a Hidra”, de Pollaiolo. Diferentemente de Hércules, em respeito às regras de uso do Facebook, Lobzovsky está de calça.

Ambar Barrera, 31, trabalha para um site de notícias locais em Puebla, no México, e não tem ideia de como veio a descobrir o grupo Izoizolyacia.

Mas no mesmo dia em que ela editou o mais recente dos artigos sombrios sobre o crescente número de casos do coronavírus em sua região, ela montou uma câmera de controle remoto, fez uma pilha com um vestido vermelho, um cobertor e bichos de pelúcia, sobre um banquinho posicionado em seu colo com as pernas para cima, prendeu um canto do vestido entre os dentes, e registrou a foto. Era seu quadro favorito de Frida Kahlo, “Sem Esperança”.

“Não falo o idioma de vocês, mas gostaria de compartilhar essa imagem”, ela escreveu. “Ver o que vocês estão compartilhando foi uma inspiração.”

No estado de Connecticut, Vasilenko, 35, que se mudou de Moscou para os Estados Unidos em 2016, disse que a pandemia a havia forçado —e coagido— a tentar coisas novas. Além de canalizar Kandinsky na desordem do quarto de seu filho, ela agora está dando aulas de piano online e fazendo planos para oferecer cursos em vídeo sobre teoria musical.

“É como se você finalmente tivesse o direito de se ocupar com bobagens sem que ninguém possa criticá-lo por isso”, disse Vasilenko. ”Antes você tinha a obrigação de limpar seu quarto. Agora não precisa mais.”

Tradução de Paulo Migliacci

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