Entenda por que memes da ultradireita fetichizam homens fortes e machões

Grupos conservadores se valem de imaginário gay para defender líderes com causas homofóbicas

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O Davi, de Michelangelo, fotografado pelo artista Alair Gomes, famoso por seus retratos homoeróticos

O Davi, de Michelangelo, fotografado pelo artista Alair Gomes, famoso por seus retratos homoeróticos Divulgação

São Paulo

Durante o período de um ano e meio no qual trabalhou em seu novo livro, o escritor Ricardo Lísias angariou uma série de imagens de líderes conservadores retratados com corpos musculosos, segurando armas ou vestidos de super-heróis, não raro com um peitoral avantajado em destaque.

Numa das ilustrações, o presidente Jair Bolsonaro aparece de torso nu, com as formas de um Rambo, dando um chute no rosto de um adversário caído no chão –“make Brazil great again”, diz a legenda. Noutra, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, está fantasiado de Capitão América enquanto faz uma expressão —pretensamente— assustadora.

Uma terceira imagem retrata o premiê indiano, o conservador Narendra Modi, levantando halteres e exibindo os braços torneados. Há também uma montagem com o mandatário russo, Vladimir Putin, de regata branca, fazendo um olhar lânguido para a câmera.

O presidente russo Vladimir Putin faz passeio a cavalo em Tuva, sul da Sibéria - Alexei Druzhinin -3.ago.2009/Reuters/RIA Novosti/Pool

Desde a eleição que deu a vitória a Donald Trump, há quatro anos, apoiadores de governantes bem à direita do espectro político se dedicam a produzir e divulgar nas redes sociais e em fóruns memes que mostram o corpo masculino em todo o seu esplendor.

O curioso é que essa iconografia, recheada de referências homoeróticas, serve para defender presidentes que fazem declarações e apoiam leis homofóbicas —a exemplo de Bolsonaro e de Putin.

Na visão de uma série de pesquisadores, a fetichização do corpo masculino —e de uma ideia específica de masculinidade— é de fato um dos temas mais presentes nos memes da ultradireita. Estas imagens de homens indestrutíveis, que costumam vir embaladas numa linguagem humorística típica das redes sociais, aparentemente inofensiva, também servem para divulgar de maneira eficaz o ideário político por trás de seu surgimento.

“Em geral, nós vivemos em sociedades que valorizam esse tipo de corpo, que não são sociedades fascistas em si, mas o fascismo pega esses corpos e os leva ao extremo”, diz Federico Finchlestein, professor de história da universidade New School, em Nova York, e autor de “Do Fascismo ao Populismo na História”, lançado no país pela Edições 70.

Obviamente, nem Bolsonaro nem Trump —com sua “obesidade mórbida”— têm o físico de um soldado grego, acrescenta o teórico, para quem tais memes funcionam como “fantasias do que eles gostariam de ser, não o que eles são”.

A exaltação do biotipo hipermasculino deixa claro que uma sociedade de inclinações fascistas é uma sociedade de homens, em que as mulheres estão ausentes do quadro e não têm papel de decisão, mas servem para a função reprodutiva e se dedicar à casa, acrescenta Finchelstein.

“O que você vê é um sintoma do ódio profundo pelas pessoas que não correspondem a essa ideia de macho. Estas imagens não são uma piada, elas têm implicações políticas para a democracia.”

Enquanto as mulheres são inferiorizadas, membros da comunidade LGBT são abertamente esculachados. Em outubro do ano passado, o deputado federal Eduardo Bolsonaro postou no Twitter uma foto sua segurando uma metralhadora ao lado de uma imagem da drag queen Dyhzyd, vivida por Estanislao Fernández, filho do presidente da Argentina e um defensor da diversidade sexual. A legenda do post dizia “isto não é um meme”, numa ironia que transformava o conjunto em meme.

Antes disso, durante as eleições presidenciais brasileiras há dois anos, “houve muita agressão ao Jean Wyllys, tenho a impressão de que ele foi tão agredido quanto o Lula nos memes”, afirma Lísias. O escritor dedicou parte de seu mais recente livro, “Diário da Catástrofe Brasileira”, que sai pela editora Record —um misto de diário e ensaio sobre o governo Bolsonaro que chega às livrarias no próximo dia 13—, a analisar a agressividade dessas montagens.

Lísias conta ter tido a impressão de que o ex-deputado federal foi atacado exclusivamente por ser gay. Ele acredita que, durante uma campanha marcada pelo tom homofóbico das declarações de Bolsonaro, os memes dos apoiadores do presidente não visavam atingir exclusivamente Wyllys, mas sim usar a sua figura como forma de agredir todos os homossexuais do sexo masculino.

A beleza física como significante de masculinidade —uma alusão aos princípios gregos de harmonia, proporção e controle— passou a vigorar nas sociedades modernas a partir da segunda metade do século 18 e do início do 19, coincidindo com a ascensão da burguesia europeia.

Mas a construção desse imaginário só existe graças à exclusão de tipos considerados marginais, a exemplo dos homossexuais e dos judeus, como notou o historiador George Mosse em “The Image of Man: the Creation of Modern Masculinity”, livro ainda sem tradução para a língua portuguesa.

Já a referência aos super-heróis viria da Alemanha de Hitler, argumenta Finchelstein. Ele exemplifica com uma ilustração da época que mostra o corpo franzino do führer coberto pela armadura de um cavaleiro medieval, olhando para frente enquanto segura uma bandeira com a suástica —ele é o salvador da pátria.

Segundo Fernanda Heinzelmann, doutora em Psicologia pela USP com pesquisa sobre gênero, “o ‘homem de verdade’ que protagoniza esta masculinidade é um ser idealizado demais para ser humano, talvez por isso o apelo ao universo de fantasia dos super heróis".

"Ao mesmo tempo que se trata de um padrão inalcançável, talvez haja algum alento pessoal de saber que o Batman e o Super-Homem não existem de fato, portanto não representam uma competição concreta."

Por outro lado, a própria indústria do erotismo e da pornografia gay estimulou durante várias décadas do século 20 a circulação de imagens de corpos masculinos trabalhados em academias de ginástica, tornando esse físico desejável e alimentando o mito do homossexual bonito e que se cuida, lembra o sociólogo Fábio Mariano Borges, professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing.

Segundo Borges, quem enxerga homoerotismo em memes que destacam corpos viris são os homens gays. Héteros, diz, não se ateriam a esta interpretação, e sim ficariam admirados com tais ilustrações, feitas para mostrar um ideal a ser atingido. “Essas imagens foram montadas para o público hétero, não para o público LGBT. Não tem sensualidade nelas", afirma. "Se gay tem prazer em imagem hétero, aí é uma outra questão.”

Racismo de memes atinge ditaduras e democracias

Os memes que exaltam líderes de ultradireita são distribuídos em grupos de Facebook como as páginas God Emperor Trump e God Emperor Putin, além de fóruns na Internet, a exemplo do The_Donald, que funcionava no Reddit e foi desativado em junho pelo CEO do site.

Com 790 mil membros, o The_Donald era o maior grupo de discussão no Reddit em apoio ao presidente americano, Donald Trump —e uma fonte interminável de memes que em seguida chegariam a outras redes sociais e a aplicativos de mensagem. Neste fórum surgiu, inclusive, um vídeo divulgado pelo próprio Trump em seu Twitter.

Os executivos do site disseram que os participantes violaram as regras da plataforma ao utilizar discurso de ódio e ofender outros usuários. “O Reddit é um lugar para comunidade e pertencimento, não para atacar pessoas”, afirmou Steve Huffman, executivo-chefe da empresa.

No artigo “Elite Male Bodies: The Circulation of Alt-Right Memes and the Framing of Politicians on Social Media”, pesquisadores da Holanda e da Alemanha argumentam que os memes foram adotados por apoiadores de Trump e do presidente russo, Vladimir Putin, para “justificar um discurso racista e sexista” ao empregarem “uma narrativa heroica e caricatural”.

O texto —publicado em 2018 numa revista acadêmica— afirma ainda que essas montagens têm alto poder de impacto. Apesar de usarem da paródia e do bom humor, não são inofensivas, mas sim “uma maneira chave de se engajar com a democracia e a cidadania atualmente”.

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