Descrição de chapéu

Brancos que louvam o 'Pantera' manterão o cinema farra de amigos?

Críticas ao audiovisual devem ser feitas a partir do legado de Chadwick Boseman, que lutava pela igualdade nas produções

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Djamila Ribeiro

Mestra em filosofia política pela Unifesp, coordenadora da 'Coleção Feminismos Plurais' e autora dos livros 'O Que é Lugar de Fala?' (ed. Pólen Livros) e 'Quem Tem Medo do Feminismo Negro?” (ed. Companhia das Letras)

Tocados, acordamos todas e todos com a notícia da partida de Chadwick Boseman, cujo trabalho em Pantera Negra ganhou o mundo. Oferendas estão sendo postas aos pés da imagem e legado que deixou para a população que agora se despede com memórias, celebrações e saudades.

No ritual fúnebre na tradição afro-brasileira, histórias são contadas, dançamos, cantamos, comemos, bebemos e imortalizamos quem se foi no coração dos que aqui continuam. Peço licença para também participar desse grande ritual, à altura desse grande guerreiro caçador que inspirou toda a diáspora.

Ressalto que não sou analista de cinema, nem conheci pessoalmente Chadwick Boseman, e então participo a partir dos sentimentos que seu trabalho me proporcionou sobretudo em “Pantera Negra”, como também a partir de elementos que pesquisei quando tocada pela precoce partida.

O ator Chadwick Boseman
O ator Chadwick Boseman - REUTERS

Como uma mulher de Candomblé, saúdo Oxóssi, orixá da caça farta, que, segundo o babalorixá Rodney William, parece ser o rei da cabeça de T’Challa, icônico personagem vivido por Chadwick.

As circunstâncias de seu falecimento, contudo, transcendem o personagem e nos convidam a começar a cantiga para o orixá ao homem, ator que, discreto como um caçador, manteve sob sigilo uma doença tão rumorosa, que poderia inviabilizar seu elenco para o personagem, para honrar sua família ancestral.

Viveu o Rei de Wakanda e, da mais arguta sabedoria pela busca da paz, foi sábio; de seu talento inspirou a muitos o sentimento e o interesse pela união das comunidades negras em prol dos povos do mundo, com a justiça e generosidade da distribuição; de seu papel fez a flecha para iluminar os olhos de nossos jovens das populações afrodiaspóricas, que tiveram nesse filme uma oportunidade rara para celebrar nossos antepassados, com todos os limites que um filme pode trazer.

O sucesso do filme fez com que muitas pessoas incomodadas, porém sem ter muito o que dizer, lembrassem que estamos sob a égide do capitalismo e que tal filme visaria o lucro de uma indústria que fez do racismo o método para apagar personagens e tramas com pessoas negras ao longo da história.

Ora, certa vez falei à essa Folha, quando perguntada sobre isso, questionei porque ninguém lembra do capitalismo quando estão em cartaz "Homem de Ferro", "Capitão América", "Hulk", "Super-Homem", "Homem-Aranha". Para a população negra o filme foi de uma importância inegável, transcendeu a obra e inspirou. E isso é alimento para todo um povo. Pessoas como eu, da geração Xuxa com apenas paquitas loiras, sabem bem o que isso significa.

Acredito que os questionamentos à indústria devem ser feitos a partir de seu legado, como, por exemplo, os muitos círculos brancos que celebram o Pantera continuarão a manter o audiovisual brasileiro como uma farra entre amigos?

Que a comoção pela importância de sua obra seja um holofote mirado às estruturas do sistema que privilegia um grupo social. Que a inspiração que ele trouxe movimente os que têm oportunidade de agir em assumir a responsabilidade para tanto, honrosas exceções à parte.

Chadwick, ao final de sua carreira, exigia que pelo menos metade da produção audiovisual em que ele estava inserido fosse negra em todas as áreas. É a transformação que só um caçador que entra na estrutura pisando silente em folhas secas consegue fazer.

Claro que seu trabalho mais célebre tornou o foco dos textos, vídeos e honrarias à sua memória, porém, como muitos destacam, Chadwick não se resume a ser o Pantera Negra, embora esse título por si só já bastaria a consagrá-lo entre os maiores.

Interpretou o jogador de beisebol Jackie Robinson, que foi precursor no rompimento ao segregacionismo no esporte; trouxe à vida James Brown, notório "pai do soul", entre outros papéis em sua extensa carreira. Viveu intensamente e seu legado será sempre lembrado.

No belíssimo texto publicado nessa Folha, o brilhante Dodô Azevedo lembrou o guerreiro rei condenado de morte por um veneno, porém que luta pelo povo e é eternizado: “uma lenda do sudeste da África conta que um guerreiro picado por uma cobra venenosa tem de, ante os orixás, escolher entre se recolher para morrer rezando ou liderar sua tribo na colheita. Escondendo os efeitos do veneno, o rei então fez o trabalho. Salvou sua tribo, recolheu a melhor colheita de todos os tempos e se tornou um herói, exemplo para futuras gerações”. Poucas palavras seriam tão certeiras. Chad, obrigado por tudo.

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