Descrição de chapéu The New York Times

Morre Shere Hite, que vasculhou os segredos do orgasmo feminino

Trabalho da pesquisadora, sísmico na época da publicação, desafiou teorias sobre a sexualidade

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Katharine Q. Seelye
The New York Times

Shere Hite, que surpreendeu o mundo na década de 1970 com relatórios inovadores sobre a sexualidade feminina e a conclusão de que mulheres não precisavam de relações sexuais convencionais —ou de homens, no caso— para obter satisfação sexual, morreu na quarta (9) em Londres, aos 77 anos.

Seu marido, Paul Sullivan, confirmou a morte ao jornal inglês The Guardian. A publicação citou uma amiga de Hite segundo a qual ela havia recebido tratamento para as doenças de Alzheimer e Parkinson.

Seu trabalho mais famoso, "O Relatório Hite: Um Profundo Estudo sobre a Sexualidade Feminina" (1976), desafiou as teorias da sociedade e de Freud sobre como as mulheres atingiam o orgasmo: não era necessariamente por meio da relação sexual, escreveu Hite; as mulheres, segundo ela descobriu, eram perfeitamente capazes de encontrar prazer sexual por conta própria.

Shere Hite, em visita à prefeita de São Paulo Marta Suplicy
Shere Hite, em visita à prefeita de São Paulo Marta Suplicy - Vania Delpoio/Folhapress

Por mais óbvias que suas conclusões possam parecer hoje, elas foram sísmicas na época e "provocaram uma revolução no quarto", como relatou a revista americana Ms. Para todas as mulheres que fingiam ter orgasmo durante a relação sexual, o Relatório Hite ajudou a despertar seu poder sexual e foi considerado um fator da liberação feminina, que já acontecia rapidamente.

O livro se tornou um best-seller instantâneo e foi traduzido para uma dúzia de idiomas. Mais de 48 milhões de exemplares foram vendidos em todo o mundo.

O que diferencia o Relatório Hite de outros estudos são os questionários que formam seu núcleo. Mais de 3.000 mulheres responderam às perguntas de forma anônima, o que lhes permitiu escrever com franqueza e abertura sobre suas experiências —e não respondendo a perguntas de múltipla escolha.

"Os pesquisadores deveriam parar de dizer às mulheres o que elas devem sentir sexualmente e começar a perguntar o que elas sentem sexualmente", escreveu Hite. Ela descreveu os questionários como um "bate-papo gigante em papel".

Em depoimentos reveladores em primeira pessoa, mais de 70% das entrevistadas demoliram a ideia de que as mulheres recebiam estímulo suficiente durante a relação sexual básica para atingir o clímax.

Em vez disso, elas disseram que precisavam de estimulação do clitóris, mas muitas se sentiam culpadas e inadequadas quanto a isso e ficavam com vergonha de dizer a seus parceiros sexuais.

Essas opiniões, no auge da Segunda Onda do feminismo nos Estados Unidos, marcaram um forte ponto de inflexão depois da "revolução sexual" dos anos 1960, que essencialmente deu às mulheres licença para fazer sexo sem compromisso com vários parceiros, o que os homens sempre fizeram, mas pouco havia modificado a dinâmica sexual do casal, centrada no homem.

Se as mulheres se sentiram liberadas, muitos homens ficaram alarmados. Eles consideraram Hite uma mensageira indesejável que estava dizendo que eles faziam coisas erradas. Ao mesmo tempo, a direita cristã em ascensão via a defesa do prazer sexual feminino como contribuição à dissolução da família.

Também foi acusada de usar metodologia falha e amostragem distorcida e foi punida em termos pessoais e cruéis. A revista Playboy, para a qual ela havia posado de seios nus, chamou o trabalho de "The Hate Report" [o relatório do ódio]. Alguns disseram que deveria mudar o nome para Sheer Hype [puro modismo].

Hite continuou a escrever. Em "O Relatório Hite sobre Homens e Sexualidade Masculina" (1981), ela analisou questionários de mais de 7.000 homens e concluiu que raiva reprimida e infidelidade eram características comuns nos casamentos americanos.

Ela completou a trilogia com "Mulheres e Amor: Uma Revolução Cultural em Progresso" (1987), em que questionários de 4.500 mulheres a levaram a concluir que as mulheres consideravam seus relacionamentos com os homens "frustração emocional crescente e desilusão gradual".

Ambos os livros posteriores foram amplamente criticados por se basearem em amostras não representativas dos entrevistados. Após a publicação de "Mulheres e Amor", que a revista Time disse ser uma desculpa para sua "crítica aos homens", Hite recebeu ameaças de morte.

Muitos a rejeitaram como uma feminista raivosa, embora ela tivesse chegado ao seu feminismo de forma indireta. Como estudante de pós-graduação na Universidade Columbia, ela pagou as mensalidades trabalhando às vezes como modelo. Uma das marcas para as quais posou foram as máquinas de escrever Olivetti, que a mostravam como uma loira de pernas compridas acariciando um teclado.

Mas quando ela viu o slogan do anúncio —"A máquina de escrever é tão inteligente que ela não precisa ser"— ficou horrorizada e se juntou a um grupo de mulheres que faziam piquetes diante dos escritórios da Olivetti contra o anúncio em que ela estava.

Isso a levou a participar de reuniões do grupo de Nova York da Organização Nacional para Mulheres. Em uma reunião, segundo ela, o tema foi o orgasmo feminino e se todas as mulheres o tinham. Houve silêncio até que alguém sugeriu que Hite investigasse o assunto. Quando ela viu que havia pouca pesquisa a respeito, começou o que se tornaria "O Relatório Hite".

A onda de raiva e de ressentimento contra ela inspirou 12 feministas proeminentes, incluindo Gloria Steinem e Barbara Ehrenreich, a denunciar os ataques da mídia a Hite como uma reação conservadora não tanto contra uma mulher, mas "contra os direitos das mulheres em todos os lugares".

E estimulou a decisão de Hite de desistir de seu passaporte americano, deixar o país e se estabelecer na Europa, onde sentiu que suas ideias eram mais aceitas.

"Renunciei à minha cidadania em 1995", escreveu ela em 2003 em The New Statesman. "Depois de uma década de ataques contínuos a mim e ao meu trabalho, particularmente meus 'relatórios' sobre a sexualidade feminina, não me sentia mais livre para realizar minhas pesquisas com o melhor de minha capacidade no país onde nasci."

O New York Times a encontrou na Alemanha em 1996, no apartamento que ela dividia com seu marido alemão, o pianista Friedrich Horicke, em Colônia. "A aparência de perseguida que ela tinha durante seus últimos anos nos Estados Unidos se foi há muito tempo", escreveu o jornal, "e ela recuperou seu senso de humor —mas apenas porque está, finalmente, sendo levada a sério".

Shirley Diana Gregory nasceu em 2 de novembro de 1942, em Saint Joseph, no Missouri, filha de Paul e Shirley (Hurt) Gregory. Sua mãe tinha 16 anos na época, e seu pai era um soldado.

O casamento acabou logo após a Segunda Guerra Mundial. Quando sua mãe se casou novamente, Shirley assumiu o sobrenome do padrasto, Raymond Hite, um caminhoneiro que a adotou, e passou a se chamar Shere (pronuncia-se "shér").

Depois do fracasso do casamento, ela foi criada principalmente pelos avós e, quando eles se divorciaram em meados da década de 1950, ela foi morar com uma tia na Flórida.

Hite recebeu seu bacharelado e mestrado em história pela Universidade da Flórida em Gainesville em meados da década de 1960. Frequentou a escola de pós-graduação em Columbia, onde começou a preparar um doutorado em história social, mas saiu quando foi informada de que não poderia escrever sua dissertação sobre sexualidade feminina.

Hite se casou com Horicke, 19 anos mais jovem que ela, em 1985, em Nova York. Mudou-se para a Europa com ele em 1989 e, após renunciar a seu passaporte americano em 1995, tornou-se cidadã alemã.

Mais tarde se divorciaram, e ela se estabeleceu no norte de Londres com seu segundo marido, Sullivan, que é seu único familiar imediato.

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