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Livros

Audre Lorde traz frescor da transformação radical com três novos livros

Obra da escritora ensina que só é possível pensar o mundo partindo da questão do amor e da diferença

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Rosane Borges

Jornalista e pesquisadora da ECA-USP

É fenômeno recente o engajamento de editoras brasileiras na publicação em série de pensadoras da diáspora africana, pouco ou nada traduzidas no Brasil, a despeito de sua circulação intensa nos circuitos do ativismo e da intelectualidade negra.

Para ficarmos em exemplos recentes, as obras de Angela Davis foram publicadas pela Boitempo e as de bell hooks, escritora que grafa seu nome em minúsculas, majoritariamente pela Elefante. Em hora oportuna, Audre Lorde também é beneficiada por esse tour de force que resulta na coleção que recebe seu nome, fruto da parceria entre as editoras Ubu, Bazar do Tempo, Relicário e Elefante, algo inédito no Brasil.

audre lorde
A escritora Audre Lorde, que tem três novos livros lançados - Reprodução

O ineditismo se torna ainda mais expressivo com a adoção de um único projeto gráfico para as quatro obras, com capas rigorosamente iguais.

Numa atmosfera marcada pela convocação antirracista em todos os domínios, esta coleção persevera no intuito de impulsionar a circulação do nome e da obra desta autora nova-iorquina de origem afro-caribenha, que há muito vem fazendo escola entre as mulheres negras brasileiras e se firmando como referência obrigatória para o feminismo negro, a luta antirracista e LGBTQI+.

Extensivamente, é uma obra que se oferece como inescapável para todos aqueles preocupados com os destinos da humanidade.

Mulher, negra, lésbica, mãe, poeta, professora, Lorde habita o mundo da linguagem para fazer das palavras, a um só tempo, refúgio e território de resistência ou reexistência. Em todas as suas obras, testemunha a presença inarredável das palavras, não só em sua dimensão veicular, mas como cláusula que inscreve os absolutamente outros no estatuto do humano.

Os três livros lançados recentemente —“Sou Sua Irmã”, da Ubu, “Entre Nós Mesmas”, da Bazar do Tempo, e “A Unicórnia Preta”, da Relicário— flagram a insistência da escritora em reconstituir os laços entre mulheres lésbicas e heterossexuais e também entre homens negros.

Mulher negra de óculos
Escritora e ativista Audre Lorde - Elsa Dorfman / wikimedia

Segundo ela, as distâncias impostas pela escravidão, pelo patriarcado e pelo racismo fazem com que, ilusoriamente, mulheres negras hétero se sintam em patamar diferenciado e ocasionalmente superior em relação às mulheres negras lésbicas, o que nos impede de cultivar um solo comum capaz de germinar a solidariedade e avançar rumo a uma plataforma política que enfrente o que nos destitui e mata.

Tal questão leva Lorde a conceber a diferença como basilar para a convivência mútua entre pessoas negras que são, por essência, diversas —“mulheres negras não são um tonel de leite achocolatado homogêneo”.

Esse é um dos motes que vertebram “Sou Sua Irmã”. A faina poética é a pia batismal que inicia Lorde muito prematuramente no mundo da escrita. Um mundo que roça na pele da vida como ela é, fazendo jorrar amor, dor, ódio, raiva.

A terceira parte do livro, “Uma Explosão de Luz”, são relatos na forma de diário em que acompanhamos a luta corajosa de Lorde contra o câncer, travada em concomitância com seu ativismo engajado, sempre cortando silêncios em prol da emancipação dos subalternizados.

Escrito no intervalo de 1973 a 1982, “Entre Nós Mesmas” reafirma a vocação poética de Lorde, que reúne elementos da natureza e os metamorfoseia em outras linhas de montagem, produzindo sentidos de território, diáspora, memória.

São poemas-exortação que nos convocam a construir e palmilhar trilhas subjetivas, fundamentalmente políticas, que franqueiam possibilidades de nos situar altiva e singelamente nos mundos que habitamos e nos habitam.

Nos poemas de “A Unicórnia Preta”, de 1975 a 1977, as vivas impressões de uma África plural pulsam e se estendem do Caribe ao Harlem nova-iorquino. As mulheres que amam são também mulheres guerreiras, que esgrimem suas espadas afiadas.

Ao projetar a unicórnia preta, que não é humana, Lorde toca as feridas abertas de um projeto moderno ocidental que deixou muita gente de fora do seu guarda-chuva. É um livro que nos faz navegar por outras cosmovisões, provavelmente com a intenção de resgatar o que sempre foi recalcado pelo dominador.

As imagens da África e da afrodiáspora parecem cumprir um programa genealógico com potência para desfazer e refazer paradigmas existenciais. “A unicórnia preta é inquieta/ a unicórnia preta é implacável/ a unicórnia não é livre.”

Com esses três livros já em circulação —“Zami: Uma Biomitografia” será lançado em 2021 pela Elefante—, Lorde traz o frescor das possibilidades da transformação radical pelas pétalas das vozes que se abrem, uma a uma e percorre um arco amplo de temas que vêm ganhando novos pontos de inflexão.

O conjunto de sua obra não poderá ser circunscrito nos liames restritos do identitarismo e do subjetivismo. Ao tratar de subjetividade, do amor —principalmente entre mulheres— e da diferença, Lorde não se posiciona em terreno restrito.

Pelo contrário, a partir destas categorias nos ensina poeticamente que só é possível pensar e transformar o mundo se considerarmos de partida estas questões que nunca foram menores, tampouco acessórias.

Quem tiver olhos de ver e ouvidos para ouvir, que acompanhe de forma comprometida o que irradia de seu pensamento e de seu ativismo, irrompendo outros enunciados que tornam visíveis camadas soterradas das existências de cada uma e de todos.

Sou Sua Irmã – Escritos Reunidos e Inéditos

  • Preço R$ 59,90 (224 págs.)
  • Autoria Audre Lorde
  • Editora Ubu
  • Tradução Stephanie Borges

Entre Nós Mesmas – Poemas Reunidos

  • Preço R$ 55 (224 págs.)
  • Autoria Audre Lorde
  • Editora Bazar do Tempo
  • Tradução Tatiana Nascimento e Valéria Lima

A Unicórnia Preta

  • Preço R$ 59,90 (300 págs.)
  • Autoria Audre Lorde
  • Editora Relicário
  • Tradução Stephanie Borges
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