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Como 'O Grande Gatsby' se tornou uma arma contra Trump e seus aliados

Pessoas usam citações do clássico de F. Scott Fitzgerald para criticar republicanos nas redes sociais

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Os atores Leonardo DiCaprio e Carey Mulligan em cena do filme 'O Grande Gatsby', do diretor Baz Luhrmann

Os atores Leonardo DiCaprio e Carey Mulligan em cena do filme 'O Grande Gatsby', do diretor Baz Luhrmann Divulgação

Ian Prasad Philbrick
The New York Times

Poderia ter sido um dia qualquer na internet. Um comentário crítico circulou nas redes sociais sem citar especificamente o presidente Donald Trump e seus aliados republicanos, mas obviamente direcionado a eles.

Mas o trecho compartilhado nos últimos dias por educadores, escritores e veteranos de administrações presidenciais anteriores veio de uma fonte improvável –“O Grande Gatsby”, o romance de F. Scott Fitzgerald sobre ganância e aspiração publicado quase um século atrás.

"Quebravam e esmagavam coisas e criaturas e, então, se entrincheiravam atrás de seu dinheiro ou se escondiam por trás de sua indiferença ou seja lá o que fosse que os mantinha juntos enquanto deixavam que outras pessoas limpassem a sujeira que haviam feito", diz o trecho em questão, na tradução de William Lagos, publicada no país pela editora L&PM.

"Eram pessoas descuidadas”, conclui Nick Carraway, o narrador, sobre Tom e Daisy Buchanan, personagens cujos excessos acabam destruindo a vida das pessoas que os cercam. “Destruíam coisas e pessoas e depois se refugiavam em seu dinheiro ou seu imenso descuidado, ou no que quer que fosse que os mantinha juntos, e deixavam que outros cuidassem do estrago que tinham causado.”

Para as pessoas que compartilharam o trecho online, a crítica arrasadora feita por Fitzgerald dos ricos e blasés Buchanans nas páginas finais do livro parece se aplicar perfeitamente a uma administração que vem tentando minimizar a pandemia, mesmo depois de Trump e outros republicanos de peso terem tido Covid-19.

“Para mim, o chocante foi a justaposição entre seu privilégio e sua aparente indiferença à possibilidade de propagarem o coronavírus”, comentou Natalie Ring, professora-adjunta da Universidade do Texas em Dallas cujo tuíte com o trecho do romance de Fitzgeral recebeu milhares de curtidas e foi compartilhado milhares de vezes. “Simplesmente fiquei pasma com o pouco-caso dessas pessoas, como diz Fitzgerald.”

Jeremy Konyndyk, que ajudou a comandar a resposta dos Estados Unidos ao surto de ebola durante a administração Obama, também tuitou a frase. “Essa é a essência do trecho, como eu o vejo, que as regras normais não se aplicam a eles, que eles podem bagunçar tudo e haverá outros ali para limpar a sujeira que eles deixam”, disse ele. “Para mim, é essa que vem sendo a atitude desta Casa Branca em relação à pandemia.”

O trecho de Fitzgerald reapareceu diversas vezes durante os anos Trump, vindo à tona intermitentemente como os olhos do Doutor T. J. Eckleburg, que assomam, intimidantes, de um outdoor no romance de Fitzgerald, substitutos simbólicos de um deus indiferente.

A escritora Rebecca Solnit fez referência a ele num ensaio de 2017 em que dissecou a psicologia do presidente. O trecho apareceu com destaque num estudo de personalidade publicado pela revista The Atlantic que comparava Trump a Tom Buchanan. E virou uma ferramenta útil com a qual criticar a política de Trump em relação à Síria, atacar o tratamento dado por Trump a membros de sua própria administração e fundamentar críticas literárias sobre sua retórica relativa ao sonho americano.

“Quer seja um meme ou um tropo representativo da era Trump, realmente funciona”, comentou Aaron David Miller, membro sênior do think tank Carnegie Endowment for International Peace e ex-funcionário do Departamento de Estado que já tuitou o trecho várias vezes desde que Trump se tornou o presidente.

Homem e mulher com roupas elegantes em festa. Mulher segura taça
Os atores Mia Farrow e Robert Redford, durante cena do filme "O Grande Gatsby", de Jack Clayton, lançado em 1974 - Divulgação

Esse uso frequente do trecho vem comprovar a relevância duradoura de “O Grande Gatsby”. Apesar de ter vendido poucas cópias e recebido resenhas ambíguas durante a vida de Fitzgerald, o romance virou um clássico americano perene depois da morte do escritor, em 1940. Presença constante nos currículos colegiais de todo o país, meio milhão de cópias de “O Grande Gatsby” são vendidas anualmente nos Estados Unidos.

“Adoro o que um antigo aluno meu disse certa vez. 'É a Capela Sistina da literatura americana em 185 páginas'”, disse Maureen Corrigan, professora da Universidade Georgetown e autora de “So We Read On”, livro de 2014 sobre as origens e a durabilidade cultural do romance. “O livro faz algo mágico, diz algo realmente importante sobre a América e em linguagem maravilhosa, inesquecível. É por isso que estamos todos citando ‘pessoas descuidadas’ agora.”

Homem e mulher lado a lado
Cena do filme "O Grande Gatsby", de Jack Clayton, lançado em 1974 - Divulgação

Para alguns leitores, as lições de “Gatsby” foram coloridas pela presidência de Trump —e por uma pandemia que já fez mais de 214 mil mortos nos Estados Unidos e causou estragos enormes à economia.

“O problema de ‘O Grande Gatsby’, que foi escrito em 1925, é que depois veio a queda das Bolsas de Valores em 1929”, disse Ring, que dá um curso sobre a chamada era dourada da história americana (o final do século 19) e a era progressista (entre os anos 1890 e os 1920), períodos de excesso material e reformas que precederam a Grande Depressão. “Nós já estamos nessa fase.”

Mas parece provável que a presença de “O Grande Gatsby” na sociedade americana só aumente nos próximos anos. A partir de janeiro os direitos autorais do livro, que continuaram em mãos dos descendentes de Fitzgerald por anos, vão entrar para o domínio público. Isso pode levar mais atenção ao livro, disse Blake Hazard, bisneta de Fitzgerald e curadora de seu legado literário.

“Temos que supor que haverá adaptações, sequências e qualquer outra coisa que as pessoas venham a propor”, disse Hazard, cantora e compositora que vive em Los Angeles cuja conta no Instagram está repleta de referências a seu antepassado literário.

E, com a eleição que vai decidir o destino político de Donald Trump chegando cada vez mais perto, a dúvida se a presidência dele vai influir sobre futuras leituras e adaptações de “Grande Gatsby” talvez dependa de outra –o que Fitzgerald teria pensado do presidente?

“É claro que não posso falar por Scott”, disse Hazard. “Mas acho que podemos supor que ele acharia Trump um personagem grotesco.”

Tradução de Clara Allain

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