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Pedro Bandeira

Pedro Bandeira critica programa de livros infantis de Bolsonaro em carta

Autor de clássicos pré-adolescentes como 'A Droga da Obediência' questiona adaptações assépticas do MEC

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Pedro Bandeira

Um dos principais escritores da literatura brasileira e autor de sucessos como 'A Marca de uma Lágrima', 'A Droga da Obediência' e 'A Droga do Amor'.

O escritor Pedro Bandeira, um dos principais nomes da literatura infantojuvenil brasileira e autor de sucessos como “A Marca de uma Lágrima” e "A Droga da Obediência", escreve sobre o programa Conta pra Mim, do governo federal.

O programa da Sealf, a Secretaria de Alfabetização, subordinada ao Ministério da Educação, vem causando polêmica entre escritores, educadores e especialistas em infância. Após divulgar, em 27 de agosto, a disponibilização online e gratuita de 40 livros infantis, o governo federal vem sendo acusado de censura.

A lista de obras, que tem títulos como "Chapeuzinho Vermelho" e "João e Maria", traz novas versões das histórias tradicionais. Não há beijos entre personagens, mortes são substituídas por prisões e bruxas desaparecem.

Leia abaixo texto de Bandeira sobre o assunto.

*

Querido papai,

Achei ótimo que você tenha ganhado de presente essa porção de livrinhos do presidente. Não era nem seu aniversário, mas vai ver que, como você votou nele, bem que merecia esse agradecimento.

Daí, como eu ainda não sei ler, você me botou no colo e leu para mim essas historinhas. Adoro ouvir historinhas no seu colo, mas dessa vez fiquei com uma porção de dúvidas.

A história do João e da Maria você já tinha me contado várias vezes quando eu era menorzinha, lembra? Lembra que eu tremia de pavor por saber daquelas crianças abandonadas para morrer de fome na floresta, para serem devorados pelos lobos? E lembra que, no dia seguinte, eu pedia para você contar essa história outra vez, e você se espantava: “Mas, minha filha, ontem você quase chorou com essa história!”. E eu respondia: “Ah, conta, vá!”. E você contava, e repetia e repetia, até que eu parava de pedir e tudo começava de novo com outra história.

Menina com capa com gorrinho vermelho em bosque alimenta coelhos
Ilustração de Vanessa Alexandre para o conto "Chapeuzinho Vermelho", do programa do governo federal Conta pra Mim - Vanessa Alexandre/Reprodução

Agora eu explico por que tinha medo da história, mas queria ouvir tudinho de novo. É que naquele tempo o que eu tinha mais medo era de ser abandonada por você e pela mamãe, como aconteceu com o João e com a Maria. É! Eu tremia de medo, mas sabia que estava no seu colo quentinho, bem distante do abandono.

E eu pedia para ouvir a história de novo, até ficar convencida de que eu nunca, nunca seria abandonada por vocês! Mas nessa nova história que você me contou não tem nada disso! As crianças não são abandonadas pelos pais! Elas saem para passear na floresta e não é o João que tem a ideia de levar pedrinhas coloridas no bolso para ir marcando o caminho de volta; é a mãe deles que dá as pedrinhas para eles! Como a gente vai tremer ouvindo isso? Cadê a graça da história?

Se eu não tivesse tremido com ela do jeito que você me contava, acho que ainda hoje eu estaria morrendo de medo de ser abandonada...

Outro problema é a “Chapeuzinho Vermelho”. Na que você me contou e repetiu várias vezes, a mamãe dela mandava que ela fosse por um caminho mais seguro, mas ela achava que já estava grande e decidia seguir por seu próprio caminho. Por isso acabava encontrando um lobo, que não era um lobo de verdade, era um sujeito de conversa mole, que elogiava a capinha vermelha dela, dizia que ela era bonitinha e perguntava onde ela estava indo e onde era a casa da vovó. E, apavorada com a lábia do lobo, eu ficava pensando que não deveria dar a menor bola para desconhecidos, que poderiam fazer comigo e com a vovó coisas que eu nem sei bem o que sejam...

E a “Branca de Neve”? A que eu conhecia dizia que a rainha invejosa da beleza da Branquinha virava uma bruxa para matar a pobre, mas os anões no final jogavam a bruxa do alto da montanha para ela nunca mais voltar. Eles matavam a inveja da beleza!

Mas nesse novo livrinho a inveja não morre: ela vai para a cadeia, de onde poderá ser libertada um dia e novamente sair por aí perseguindo tudo que lhe dá inveja! Nessa história que você ganhou de presente, acho que eles quiseram fazer tudo mais “bonitinho”, mas acabaram fazendo uma coisa mais assustadora para mim: a bruxa malvada continua viva dentro das pessoas e pode até ficar soltinha da silva com um tal de habeas corpus que eu nem sei bem o que é...

E o "Flautista de Hamelin", então? Ele afoga os ratos que infestavam a cidade, mas, quando não lhe pagam o que ele havia pedido pelo trabalho, ele não toca outra musiquinha para levar para longe as crianças da cidade! Desse jeito, que história é essa? O que quer dizer? Cadê a graça?

E tudo isso acontece com as outras historinhas que você ganhou do presidente. Nem me conte nada disso de novo. Quero as histórias que você, a mamãe e a vovó sempre me contaram, que me davam medo, mas me faziam feliz e me ajudavam a crescer. Essas outras histórias bobinhas com desenhos sem graça, leve pra longe de mim.

Olha, papai, se eu soubesse escrever, era isso tudo o que ia contar para você.

Uma beijoca da sua filha.

Laurinha

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