SPFW institui cota racial obrigatória para desfiles em decisão histórica

Evento deste ano deve ser o 1º a determinar que metade dos modelos seja negra, afrodescendente ou indígena

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São Paulo

Os pedidos de parte da indústria da moda e da própria audiência para que a passarela da São Paulo Fashion Week represente em equidade de raça a população brasileira surtiu efeito.

Se até o ano passado o evento recomendava às marcas que um quinto dos modelos fosse afrodescendente, indígena ou asiático, a organização agora passou a exigir que metade do elenco de cada grife seja de “negros, afrodescendentes e (ou) indígenas”.

Essa regra está expressa no documento enviado às marcas do evento de moda, que terá a sua edição de 25 anos celebrada de forma virtual, com desfiles e filmes num canal do YouTube e em projeções pela cidade, na semana que vem.

O regulamento afirma que “caso a grife não atenda essa determinação, a mesma não fará mais parte do line-up”. Ou seja, quem descumprir as regras já estaria fora do evento de abril do ano que vem.

É possível que a SPFW, já nesta temporada, passe a ser a primeira semana de moda do mundo a ter um código racial para as marcas participantes.

A decisão veio na esteira de discussões do comando do evento com integrantes do coletivo Pretos na Moda, formado pelas modelos Camila Simões, Cindy Reis, Natasha Soares e Thayná Santos.

O diretor da SPFW, Paulo Borges, disse que as conversas se tornaram decisivas em maio, com a onda de protestos pela morte do americano George Floyd, um negro, asfixiado por um policial branco.

“Não posso fazer leis, mas no ambiente que fomentamos é possível haver regras, sim. Uma das coisas que prometi era que não era mais possível recomendar coisas. Quando se fala em equidade racial, isso foi entendido por todo mundo”, diz Borges.

A diretora de novos projetos da São Paulo Fashion Week e braço direito de Borges, Graça Cabral, afirma que o “letramento da parte racializada” é o primeiro passo de uma mudança maior para a redação de “uma carta de compromisso” para a proporcionalidade de raça também nos bastidores.

Isso tem a ver com críticas das comunidades negra e indígena sobre a falta de representação em cargos à sombra dos holofotes, como fotógrafos, stylists e outras equipes.

“Não estamos aqui para julgar ninguém e não queremos forçar mudanças. Mas é claro que as marcas que não queiram compartilhar dessas discussões sairão do calendário. Chegamos ao ponto de deixar de criar frases e passamos a partir para a ação”, diz Borges.

Paulo Borges, idealizador da São Paulo Fashion Week, em entrevista antes do início da semana
Paulo Borges, idealizador da São Paulo Fashion Week, em retrato de abril de 2019 - Fotosite/Divulgação

Segundo ele, nenhuma marca desistiu de participar da São Paulo Fashion Week por causa da nova exigência. Mas ainda não é possível mensurar o impacto da decisão, porque, devido à crise da pandemia e ao formato virtual da semana de moda, muitas marcas do calendário tradicional não estão no evento, a exemplo de Ellus, Cavalera e Bobstore.

Do ponto de vista prático, a nova regra chega num momento fácil de ser aplicada, já que pelo formato enxuto das apresentações, muitos desfiles terão no máximo quatro modelos desfilando os looks.
Em tese, não poderia mais ser usado como justificativa o argumento de não haver
modelos negros disponíveis.

Profissionais da indústria afirmam que as agências de São Paulo estão oferecendo às marcas uma ampla seleção de modelos afrodescendentes.

A falta de representatividade racial na passarela das semanas de moda do país é histórica e resultou num debate acalorado nos últimos anos.

De um lado, a imprensa e ONGs como a Educafro cobravam diversidade. De outro, havia um contato ineficiente entre etiquetas, criadores e donos de agências. No centro disso, as modelos se espremiam num ambiente tóxico e de silenciamento.

O assunto que já motivou a assinatura de um TAC, ou Termo de Ajustamento de Conduta, entre o evento e o Ministério Público, em 2009, depois uma série de reportagens deste jornal apontarem a falta de negros nas passarelas. O descolorido racial continuou a existir.

Numa live com Paulo Borges, em junho, Natasha Soares, do Pretos na Moda, desabafou sobre o racismo no setor. “Existe muito a questão do ‘você é lindo, mas em silêncio’. A gente é chamado para administrar crises. Quando uma marca faz algo racista, ela contrata um negro”, disse.

Na sequência, outro perfil, o Moda Racista, surgiu nas redes sociais apontando supostos casos de racismo envolvendo nomes importantes da indústria, como Reinaldo Lourenço, Gloria Coelho, Ellus e Ratier. Dessas marcas, só Gloria Coelho participará desta edição comemorativa da São Paulo Fashion Week.

Erramos: o texto foi alterado

Até o ano passado, o evento recomendava às marcas, informalmente, que 20% dos modelos fossem negros, afrodescendentes, indígenas e asiáticos. No TAC firmado em 2009, exigia-se 10%. O texto foi corrigido.

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