Morte de recém-nascido revela as várias faces do luto em 'Pieces of a Woman'

Ciclo de Cinema e Psicanálise debateu angústia e silêncios em torno do tema nesta terça (27)

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São Paulo

Uma primeira sensação de plenitude diante da expectativa do nascimento da primeira filha do casal Martha e Sean, vividos por Vanessa Kirby e Shia LeBeouf, dá rapidamente lugar ao desespero diante de dificuldades no parto domiciliar que levam à morte do bebê.

O longa “Pieces of a Woman” (sem tradução), do húngaro Kornél Mundruczó, fala desse evento traumático e do trabalho de luto de Martha e de outros membros da família, que lidam com a perda a partir de seus próprios repertórios emocionais.

No debate no Ciclo de Cinema e Psicanálise, ocorrido nesta terça-feira (27), a psicanalista Elza Magnoler associou o processo vivido por Martha com o mito de Deméter, deusa associada à agricultura e à fertilidade na mitologia grega, que perde sua filha, Perséfone, raptada por Hades, deus associado ao mundo dos mortos. Deméter vaga à procura de Perséfone, abdica de sua condição divina e desce ao mundo dos mortos em busca da filha, deixando campos secos e terras inférteis na Terra.

A passagem das estações do ano e a construção de uma ponte, na qual Sean trabalha no filme, são metáforas da passagem do tempo e do processo de luto que a psicanalista associa ao mito. Martha, na elaboração da perda, faz a travessia entre os dois mundos para, simbolicamente, resgatar a filha.

A forma retraída como Martha começa o luto, mas com ataques de raiva e de desprezo pelo marido e pela própria mãe, controladora e que projeta seus traumas na filha, é uma característica predominante da melancolia, segundo Luciana Saddi, psicanalista e mediadora do debate. Luto e melancolia, estudados pelo pai da psicanálise Sigmund Freud (1856-1939), são processos diante da perda.

“Essa retração indica uma perda de sentido da vida. Para nós, psicanalistas, também indica um desinvestimento libidinal, típico do luto. A raiva, voltada contra si ou contra o outro, também é própria do sentimento, embora seja predominante na melancolia, mas muito mais inconsciente”, disse Saddi.

O silêncio comum diante do tema, que constrange e angustia quem está em volta, é parte do tabu que cerca um evento tão traumático. “A morte de filhos e crianças é um tema que se evita muito na mídia e no entretenimento porque a gente nunca quer se identificar com os protagonistas e sentir a dor que eles sentem”, afirmou Camila Appel, roteirista e autora do blog Morte sem Tabu, da Folha.

Appel trouxe ao debate a experiência do diretor e da roteirista do filme, Kata Wéber, que são um casal e tiveram um aborto. Quebrar o silêncio sobre o ocorrido deu origem a uma peça de teatro, que depois se transformou no longa.

Jéssica Moreira, jornalista e também autora do blog Morte sem Tabu, ressaltou a importância de falar sobre morte e luto, principalmente no momento de pandemia pelo qual passa o Brasil.

Ela ressalta como o tabu diante da morte é mais forte nas periferias e o luto das mulheres negras, ignorado. “A sociedade exige que as mulheres negras sejam fortalezas, como se não pudessem mostrar suas dores , disse.

Embora o sofrimento do marido de Martha seja retratado de forma mais explícita que o da protagonista –Sean volta a beber e torna-se agressivo com a esposa– ,as autoras do blog Morte sem Tabu lembram que a experiência de luto dos homens diante do aborto ou da perda de um filho costuma ser ainda mais invisível que a da mulher numa sociedade que não associa a gestação e a criação de filhos aos homens.

O Ciclo de Cinema e Psicanálise é promovido quinzenalmente pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em parceria com a Folha e o MIS. O próximo debate será no dia 11 de maio, às 20h, sobre o filme "A-Sun", de Mong-Hong Chung, disponível na Netflix.

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