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Analfabeto aprende a ler graças a carta de amor em 'A Palavra que Resta'

Desvendar a escrita é sina e única solução no primeiro romance do cearense Stênio Gardel

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Matheus Lopes Quirino

A Palavra que Resta

  • Preço R$ 54,90 (160 págs.)
  • Autoria Stênio Gardel
  • Editora Companhia das Letras

Uma vida pelas sombras, pelas beiradas. É o que pensa de si Raimundo quando, já idoso, resolve entrar para a escola. Analfabeto, foi parido para o mundo jovem, depois de cavar, aos pés da Santa Cruz, seu calvário, quando se apaixonou por outro homem.

Avexou-se, como dizem no Norte, e partiu para uma vida nas estradas, como chapa, pegando carona com caminhoneiros Brasil adentro. Com desejo de voar, sempre preso dentro de si, com peso na consciência, Raimundo nunca esqueceu do que deixou em sua terra natal. Paixão marcada foi nele mesmo.

Em “A Palavra que Resta”, romance de estreia de Stênio Gardel, não há uma só frase que não contenha poesia. No universo criado pelo escritor cearense, estão todos aos pés da cruz preta, como na canção de João Gilberto: “Aos pés da Santa Cruz/ Você se ajoelhou/ E em nome de Jesus/ Um grande amor você jurou/ Jurou mas não cumpriu”.

Ficam os versos, as promessas, a dúvida. A dúvida que Raimundo carregará consigo por toda uma vida, lacrada dentro de um envelope, em que o próprio lacre são as palavras indecifráveis aos olhos do moço que virou velho e não sabe ler.

No romance, uma página escrita equivale a uma vida. Tamanho périplo, desatino do rapaz, Raimundo vive embebido no amor da juventude, pensa, remói, resigna-se. Pela noite, numa beira de estrada ou num inferninho. Ele sofre, pois, como diz aquele mesmo samba, emprestado de Pascal, “o coração tem razões que a própria razão desconhece”.

Raimundo, que carregou consigo a vontade de ler por uma vida, leva também Cícero, o garoto razão da própria pulsão, que lembra nos versos, uma, duas, dez vezes “Gaudêncio, te ensino a ler”. A promessa se foi, o amor, não.

O sentimento foi literalmente materializado, convertido em carta. Passaram anos, décadas, Raimundo, já franzino, de cabelos brancos, guarda o envelope com tamanho zelo, delicadeza, que a carta também é a promessa não cumprida. É o mistério da vida. Sua sina, conflito existencial. É a dúvida que resta.

Não fossem as próprias palavras muros para a liberdade, ao mesmo tempo que também são a resposta para uma nova vida, depois de tantas vidas desmanteladas ao longo da caminhada. Foi chapa, analfabeto, costureiro, voltou à sala de aula. Tentou com mulher, mas gostava de homem. Amou só uma vez.

O leitor é transportado para uma tarde preguiçosa, debaixo de um cajueiro, onde estão os dois meninos. Com um pé no regionalismo, Gardel, ao delinear um beijo, fala do gosto de caju. A atmosfera se mistura ao sentimento.

“Nas peles nuas, a saliva dos beijos e o suor dos abraços irrigavam, dentro deles, raízes fortes, de agarrar as tripas e o que mais tivesse dentro. Até a alma. E as raízes faziam das veias seiva e cresciam pelos poros como galhos trepadeiros em direção ao sol. Quando se tocavam, se engarranchavam e viravam uma planta só, com flor que se abria sobre o peito. Papoula amarela de cálice, cor de sangue”, escreve o autor, sobre o sentimento universal.

O amor, a morte, a ausência, o tempo, temas universais da poesia já muito esgarçados são ressignificados em uma narrativa ancorada na vida de um homem invisível. Aos olhos dos poetas, dos escribas de pedestal alto. Até o lançamento desta “Palavra que Resta”.

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'Índios da Meia Praia', obra de Daniela Reis que estampa a capa do romance 'A Palavra que Resta', de Stênio Gardel, publicado pela Companhia das Letras - Companhia das Letras/Reprodução

Ao pôr a cruz como marco de toda a tragédia da história e, ao mesmo tempo, ponto de encontro antes do fim do caso dos meninos, Gardel usa a tradição do culto fúnebre, do marco derradeiro, para dimensionar o lugar da memória para aqueles personagens, enquanto finca na terra um marco sobre a falta, a ausência. Tanto a cruz como a carta são sinas na vida do pai Damião e do filho Raimundo, respectivamente, mas também são a única lembrança que os transporta aos braços dos que amaram.

A tolerância, no romance, é uma questão para se pensar profundamente. Da parte do pai, que espanca o filho por sua natureza, às palavras da mãe, essas que machucam mais do que a surra de cinta. Pai, filho, cruz, e toda uma narrativa que se passou na beira de rio, onde a cruz preta permanecia. Ao voltar ao passado, tanto pai, quanto filho precisam encarar seus fantasmas, cada um em uma via crúcis que cerca uma dura realidade regada por violência, preconceito, aceitação.

Ao confrontar os próprios desejos, os personagens, já muito precoces, estabelecem uma honestidade ímpar consigo mesmos e são capazes de abdicar de uma vida com destino já traçado, de casamento arranjado com mulher, filhos, vida pacata e tranquila, sem maiores aspirações, quiçá transgressões.

Mas Gardel escreve que a “vista de Raimundo escapulia até o corpo do outro, de peito duro descamisado, coberto de suor e poeira". "Paisagem que desperta num pássaro preso ao desejo de voar. Raimundo gaiola. Cícero percebia.”

homem branco de óculos relativamente calvo
O escritor Stênio Gardel, autor do romance 'A Palavra que Resta', publicado pela Companhia das Letras - Fernanda Oliveira/Divulgação

Aprender a ler é a passagem aérea que liberta o pássaro para o voo. Nessa conquista tardia, o protagonista faz uma viagem ao seu interior, ao sítio da infância, aos pés da cruz, ao cheiro das papoulas, ao gosto dos cajus.

Ele volve e percebe, revive o toque, traça mais uma linha, surpreende, abre os olhos para um brilho renovado que sai do envelope. As letras, inimigas de uma vida, podem ser afago, consolo, tristeza, mas sempre são motivo de esperança.

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