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Kevin McGarry

Histeria em torno de Madonna no Rio não deve ser superada

Parte do fascínio da geração Z pela artista tem a ver com ela ser a única da família real do pop ainda viva e trabalhando

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Kevin McGarry

Escritor e crítico de arte

Como centenas de milhares de pessoas, viajarei ao Rio de Janeiro para assistir ao show de Madonna em Copacabana. Sou um americano que mora no Brasil e estou curioso para descobrir como minha visão sobre a artista se compara à dos brasileiros.

Nasci na costa leste dos Estados Unidos, cerca de um mês antes do lançamento do álbum de estreia de Madonna, em 1983. Estou longe de ser uma autoridade sobre sua obra, mas sua música marcou toda a minha vida e não consigo imaginar o mundo sem a influência de suas músicas, personas e mensagens, especialmente como um homem gay.

Cena do clipe de 'Justify My Love', de Madonna - @Madonna/Youtube

A longevidade quase divina da Madonna se deve, em primeiro lugar, ao seu merecido status como ícone gay. Não apenas porque ela é uma camaleoa incansável e uma leoa que, ao mesmo tempo, rejeita e se orgulha sem medo de rótulos como "vadia". Mas também porque ela foi uma defensora precoce e crucial da comunidade LGBTQIA+, especialmente daqueles que sofriam ou eram ameaçados pelo vírus do HIV e a Aids e seus estigmas nos anos 1980 e 1990.

Muitos gays americanos da geração X —nascidos entre 1965 e 1981— e alguns "boomers" —nascidos entre 1945 e 1964— que viveram essa crise como adultos são devotos de Madonna de um jeito que vai além de qualquer grupo de fãs.

É como se ela fosse uma santa, mas uma santa legal, que amplificou debates ousados, como empoderamento sexual, igualdade racial, amor inter-racial, ceticismo cristão, espiritualidade não ocidental e muitos outros, sem contar uma variedade de atividades que encantam os jovens até hoje, de parkour ao uso de salto alto por homens.

À medida que os americanos da geração Y —nascidos entre 1982 e 1994— chegaram à idade adulta e começaram a moldar as conversas culturais dominantes, muitos examinaram identidade artística de Madonna, influenciada por diferentes culturas e subculturas, e consideraram partes de sua estratégia estética uma apropriação cultural. Essa é uma das razões pelas quais muitos dos meus colegas da geração Y têm opiniões diferentes sobre a artista.

Outra razão, para os gays, é que parte desses então jovens nos anos 2000 escolheram não adorar Madonna como um ato de desafio aos mais velhos —ou talvez simplesmente por se sentirem mais próximos de outras divas influenciadas pela música dançante, que tiveram o seu sucesso pavimentado incontornavelmente por Madonna.

Como a pioneira, mais duradoura e indiscutivelmente a maior mutante pós-moderna do show business, Madonna escapou quase por completo de ser cancelada nos Estados Unidos por usar os corpos, histórias e ideias de outras pessoas. Sempre foi a exceção.

Madonna foi precursora em ser tanto uma diva quanto uma executiva ao mesmo tempo.

Embora não acredite que ela tenha usado este termo, ao longo de quatro décadas de metamorfose, Madonna sempre permaneceu uma "girlboss" —bem-sucedida, ambiciosa e assertiva em sua carreira e vida pessoal. Essa palavra, aliás, ganhou popularidade em meados dos anos 2010, mas entrou em colapso alguns anos depois, porque ficou nítido que exaltava certas virtudes do capitalismo que são insalubres.

Grande parte do fascínio da geração Z —nascidos entre 1995 até aproximadamente 2010— por Madonna se deve a ela ser a única integrante da família real do pop, ao lado do rei Michael Jackson e da princesa Britney Spears, que ainda está viva e trabalhando. Sua religião, aliás, é o trabalho. Isso não muda o fato de que ela é um gênio, um talento e uma estrela, mas sublinha o fato de que ela é uma divindade que incorpora e ao mesmo tempo subverte os valores americanos.

Ela acredita que a competição torna o mundo melhor, que expressar a individualidade é uma parte essencial de encontrar um significado para a própria vida e que a autoconfiança é mais forte do que o apoio comunitário.

São crenças que levei ao extremo ao longo de minha vida e que tornaram o país em que nasci um lugar solitário e perigoso para muitas, se não para a maioria, das pessoas que vivem lá. Não posso culpar Madonna por isso, principalmente porque ela é uma mulher e fez muito para deixar claro que, frequente e injustamente, as mulheres são culpadas pelos males da sociedade.

Mas não posso dizer que Madonna salvou os americanos de nós mesmos. A rainha do pop será lembrada como uma defensora da igualdade de gênero e da liberdade sexual, uma mestra do empreendedorismo impulsionada pela ambição neoliberal e uma artista que mudou a indústria da música não só uma vez, mas continuamente ao longo da carreira, de um jeito que nenhum de seus contemporâneos teve a resistência para competir.

Embora nem todos se declarem fãs de Madonna, quase todos devem ser muito fãs de ao menos uma música da cantora, e, se isso for verdade, seu legado, antes de tudo, realmente se trata de música.

É difícil imaginar que qualquer show no futuro próximo possa superar a histeria em torno da apresentação nas areias da praia de Copacabana.

E por que o Rio? Seria um truque de relações públicas calculado para chegar como uma heroína generosa à mesma cidade onde, no ano passado, a cantora mais popular do mundo falhou após uma tragédia atribuída por muitos à ganância? Seria um presente para os maiores fãs do mundo e para os gringos que farão uma peregrinação para a ver na cidade maravilhosa? Seja qual for o motivo, é entretenimento em sua forma mais pura e viciante.

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