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Moda põe corpo à mostra e diz que toda nudez será celebrada no pós-pandemia

Desejos represados acendem faísca hedonista com sungas cavadas, miniblusas e peças microscópicas

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São Paulo

Dizem haver algo de novidade na forma com a qual os jovens hoje se veem no espelho. O espírito libertário, fora do conceito de “normatização” estética, já tomou ruas, passarelas e redes sociais mostrando na prática o derretimento de conceitos sobre roupas feitas para homens e mulheres, qual o comprimento “moral” delas e, inclusive, se o rótulo binário de masculino ou feminino ainda é válido.

Mas a forma de expressão de gênero, conceito alheio à orientação sexual e à identidade, convencionado pela cultura pop como queer, o “Q” da sigla LGBTQIA+, está no cerne de mudanças fundamentais de estilo do Ocidente. Ocorre que, agora, no limiar de um conflito geracional entre os inconstantes millennials e os desgarrados Z, é possível olhar o passado e ver como lésbicas, gays e transgêneros cimentaram, sob opressão, um tal estilo do milênio.

Look da grife Bannanna
Modelo veste sunga da Bannanna - Gianfranco Briceño/Divulgação

O tabu da exposição do corpo talvez seja o maior exemplo. Se agora é possível ver “cropped tops”, miniblusas na altura do umbigo em voga nos desfiles da temporada europeia, sungas cavadas que encheram as praias no pré-pandemia e shorts microscópicos vendidos como o último grito de estilo para homens, em parte se deve à busca por legitimidade da comunidade gay.

Quando uma outra epidemia, a da Aids, surgiu no horizonte no início dos anos 1980 para, inicialmente, apontar os dedos para homens que faziam sexo com outros homens, a busca pelo corpo esculpido passou a ser uma forma de mostrar à sociedade da época que a imagem da doença avançada não os resumia.

Ao mesmo tempo que aprisionou os homossexuais numa busca por um arquétipo de perfeição inalcançável para muitos —que só agora arrefece com a valorização de corpos normais—, a onda esportiva pôs calças ajustadas, braços à mostra e pele aparente no radar das ruas.

A microssunga criada nos anos 1960 pelo australiano Peter Travis, um surfista homossexual e, à época, designer da marca de materiais para esportes aquáticos Speedo, foi adotada como padrão, muito antes de Fernando Gabeira aparecer de tanga lilás nas praias cariocas. Agora, recuperada do baú após um hiato de sungões, está por todos os lados como signo de afirmação.

Para se ter uma ideia, 40% das peças vendidas pela marca Bannanna, do empresário Nelson Júnior, são do modelo cavado, a “nanica” no jargão da grife. Ainda que haja preconceito no Brasil, “por uma parcela de público que aceita ver Cristiano Ronaldo usando esse tipo de sunga, mas não um homem gay”, o público já vê o artigo como uma peça que “os seus avôs usavam”.

Segundo o editor da revista Made in Brazil, Juliano Corbetta, “a ousadia é a marca de uma geração que explora a moda de uma maneira diferente, sem amarras, e que já é assimilada pela cultura”.

À frente da única publicação no Brasil com alcance global e totalmente voltada à beleza masculina, ele afirma que, embora muitas marcas nacionais ainda vejam o corpo seminu de um homem como ofensivo, os tabus sobre a masculinidade estão sendo paulatinamente quebrados. Na esteira de uma resposta positiva de grifes internacionais como Givenchy, Gucci e Balenciaga, a moda daqui começa a “cruzar fronteiras que quando a revista começou [em 2010] pareciam intransponíveis”.

O “queer”, nessa seara, é a força motriz da nova imagem de moda, que mistura pele, roupas sem padrão definido e o apreço pela desconstrução.

Não estamos falando só de homens. Se hoje o guarda-roupa das mulheres é tomado por blazers, calças e camisas, é porque uma outra mulher, em pleno século 19, mandou às favas a ideia de aprisionamento vinculada aos vestidos e espartilhos e passou a usar os costumes masculinos.

Antes do sufrágio feminino, que pôs em evidência os direitos das mulheres e extirpou o aperto dos sutiãs e das cinturas, a médica americana Mary Edwards Walker se travestiu com ternos masculinos no século 19 para ocupar um lugar entre seus pares que não viam nas mulheres pessoas aptas à prática da medicina.

Esse questionamento permeou, depois, a estética de inconformidade das lésbicas com a imagem padrão romantizada. Para jogar mais diferenciação no jogo, em 1922 o escritor francês Victor Margueritte lançou o romance “La Garçonne”. Foi considerado obsceno à época por retratar o romance de duas mulheres e imaginar uma delas com alfaiataria e cabelos curtos, na altura das orelhas, que hoje ditam uma tendência homônima, o tal estilo à la garçonne.

Look do estilista João Pimenta
Look recentes do estilista João Pimenta, que se inspirou no universo de garotas lésbicas e questiona padrões de gênero - Fabiano Battaglin e Camila Mira/Divulgação

O designer João Pimenta, hoje um dos maiores questionadores de gênero na moda brasileira, afirma enxergar uma inversão no trabalho do estilista. “Se antes as pessoas se adaptavam ao que víamos como modelagem certa ou tipo de roupa certo, agora cada um, homens ou mulheres, procura o encaixe na roupa que agrada a ele ou ela.”

Ele que sempre foi reconhecido como estilista de moda masculina, atende várias mulheres em busca de ganchos, formas e ajustes que, no passado, eram aplicados apenas aos homens. “A roupa hoje nasce sem definição de gênero. Ela só ganha uma definição quando é comprada.”

“O ‘queer’ agora destrói o que é normatizado, é um instrumento de distinção social de categorias historicamente marginalizadas”, afirma a diretora criativa e mulher trans, Neon Cunha.

De acordo com ela, “a burguesia brasileira marginalizou traços simples, como a camisa rosa para homens, ou a montação das travestis, mas legitimou a ostentação do macho personificado pela vaidade de jogadores de futebol”, por exemplo. “Para eles, a exposição do corpo ou a afetação não foi um problema, para LGBTs, sim”, afirma Cunha.

Agora, após décadas de escárnio, a sociedade assiste “à libertação desse corpos, de como o poder da imagem e da não binariedade redimensiona o comportamento e coloca de forma clara como as pessoas se percebem e, a partir do percebimento, como elas esperam ser reconhecidas”.


O que é queer

Queer é uma expressão da individualidade que não está vinculada a nenhum gênero específico ou orientação sexual. É uma atitude ou uma forma de se apresentar assumida por alguém que não se enquadra num comportamento normatizado pela sociedade

O termo foi usado nos Estados Unidos de forma pejorativa para definir homens gays, e sua tradução literal seria esquisito, estranho ou excêntrico. Por isso, é rechaçado por parte do movimento LGBTQIA+ (sigla para lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, queer, intersexuais, assexuais e outros), que prefere o termo não binário

MAIS CURTO
Não há mais regras específicas sobre o quanto de pele alguém deve mostrar. O novo estilo bebe da fonte da libertação sexual dos anos 1970 e 1980 para expor coxas, braços e colos tanto de homens quanto de mulheres na roupa casual

MAIS COLORIDO
A régua cromática caiu em desuso. As cores elétricas sepultaram o padrão azul marinho, cinza e preto de elegância ocidental, sacramentado pela costura britânica e difundida mundialmente após a revolução industrial. Agora, estampas e tons acesos diluem a imagem sisuda do guarda-roupa

MAIS DESCONSTRUÍDO
Fora dos padrões matemáticos de cintura marcada para elas e folgada para eles, brilho para elas, opaco para eles, grifes agora embaralham as referências do que se entendia antes como masculino e feminino. Não se trata do conceito unissex, mas da mistura de elementos, dos laços aos brocados, dos paletós às calças de alfaiataria, para fundar uma imagem desvinculada de qualquer normatização antes prevista pela indústria fashion

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