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Daniel Galera faz rever eleição de Bolsonaro com o coração na mão

'O Deus das Avencas', novela que dá nome ao novo livro do autor, é a melhor em um conjunto com graus distintos de acerto

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Luís Augusto Fischer

Professor de literatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor de “Literatura Brasileira - Modos de Usar” (L&PM).

O DEUS DAS AVENCAS

  • Preço R$ 54,90 (248 págs.); R$ 34,90 (ebook)
  • Autor Daniel Galera
  • Editora Companhia das Letras

Saudado como um hábil narrador realista, com uma dicção afinada com estes tempos digitais, mas reconhecível como parte da longa tradição do romance que pensa o presente desde uns 300 anos, Daniel Galera oferece ao público um volume com três novelas.

Ainda bastante jovem, ele já tinha encontrado um tom, um horizonte temático e um âmbito ético marcantes e discerníveis na paisagem literária brasileira. Aqui, dá um passo em outra direção.

São três novelas, com distintos graus de acerto. A menos bem-sucedida é a terceira, "Bugônia", um relato de fantasia (a antiga “ficção científica”) organizado em torno de um lugar, o Topo, resto de um mundo escassamente vivível depois de não se sabe qual apocalipse.

As personagens não alcançam nitidez, e nem mesmo seus nomes indicam qualquer sentido aproveitável —Chama, a Velha, Alfredo, Boloto, Tão, Sereia, depois um astronauta extraviado, todos entram e saem de cena meio difusamente, numa trama que alega se posicionar nos confins imagináveis de um futuro distópico, mas que não move a engrenagem elementar da ficção. O leitor continua precisando entender qual é o centro do conflito, avaliar o que está em jogo, se identificar com algum dos atores, para ocorrer a velha mágica da arte.

Capa do livro 'O Deus das Avencas', de Daniel Galera
Capa do livro "O Deus das Avencas", de Daniel Galera - Reprodução

A segunda novela, "Tóquio", alcança esses requisitos apenas em seu terço final. Também uma narrativa de fantasia, numa São Paulo de algumas décadas à nossa frente, com previsível cenário de destruição ambiental e dificuldades de sobrevivência, a novela começa numa sessão de psicoterapia coletiva em que vários humanos comparecem para entender o preço de conviverem cada um com sua pupa, uma por assim dizer embalagem, muito variada em formato, que carrega a rede neuronal de um ente finado tal como ela foi escaneada, antes do desaparecimento de seu portador.

Nisso se passam dezenas de páginas, de boa nitidez realista –as novidades, seres, construções, situações, por esquisitas que sejam, são designadas e descritas com a conhecida habilidade do autor, de forma que o leitor as percebe, as entende, as revive imaginariamente, como convém.

Dá para adivinhar um grande filme a partir da história, com muitos efeitos digitais. Mas ainda não há excelência narrativa, a não ser na parte final, em que o protagonista precisa enfrentar a aspereza fria de sua finada (e escaneada) mãe e a força emocional de sua ex-namorada.

A primeira narrativa, "O Deus das Avencas", a mais bem-sucedida das três, é grande ficção. O enredo tem a força das ideias simples –um casal está vivendo os derradeiros dias de uma gravidez, na Porto Alegre de agora. Há adequados flashbacks para dar tutano às trajetórias, em linguagem perfeita no vocabulário e na sintaxe. A novela é um perfeito artefato literário.

O desfecho dessa espera ocorre num dia de eleição, a mais recente corrida presidencial, que o leitor, certamente alguém desconforme com a realidade do Planalto desde então, acompanha e avalia retrospectivamente com o coração na mão e o cérebro em desconsolo.

O desfecho é uma prova da excelência do autor, num metiê que tem ar de simplicidade mas que poucos conseguem praticar com qualidade realmente alta como aqui.

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