Descrição de chapéu The New York Times

Por que os streamings de música ainda não são o suficiente para artistas

Reclamações sobre os serviços surgiram no mesmo momento em que eles próprios apareceram

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Ben Sisario
The New York Times

Quando a pandemia chegou, no ano passado, a cantora e compositora britânica Nadine Shah viu sua renda desaparecer, num instante. Os shows que a sustentavam foram cancelados e, aos 34 anos, ela teve de se mudar de volta para a casa dos pais, no nordeste da Inglaterra. “Fiquei paralisada financeiramente”, disse Shah em entrevista.

Como os músicos de muitos outros países, impedidos de realizar turnês e contemplando saldos bancários cada vez mais negativos, Shah —cujo timbre grave e composições ecléticas conquistaram muito elogios da crítica e um grupo pequeno mas fiel de fãs— começou a examinar o lado financeiro de sua vida como artista.

O dinheiro que ela recebe pela execução de suas canções em serviços de streaming como o Spotify e o Apple Music era praticamente invisível, ela disse, nunca passando de “algumas libras pagas de vez em quando”.

Arte com cores neon misturadas
Serviços de streaming como Spotify e Apple Music tiraram o negócio do abismo. Mas os artistas dizem que não conseguem ganhar a vida. E suas reclamações estão ficando mais altas - Jon Han / The New York Times

Por isso, ela se uniu a ouros artistas desiludidos para organizar uma campanha online em busca de mudança. No final do ano passado, Shah depôs diante de um comitê do Parlamento britânico que vem avaliando com rigor a economia do streaming, o que desperta a perspectiva de mudanças na regulamentação.

“Se recebêssemos uma renda decente do streaming, isso poderia garantir nossas contas semanais; poderia contribuir para o aluguel ou a hipoteca, nos momentos de maior necessidade”, disse Shah. “Por isso me senti compelida a falar sobre o assunto. Vi muitos artistas enfrentando dificuldades.”

Shah é uma das vozes mais audíveis naquilo que se tornou uma espécie de referendo público quanto à indústria da música em si. No Reino Unido, mais de 150 artistas, incluindo astros como Paul McCartney, Kate Bush e Sting, assinaram uma carta pedindo ao primeiro-ministro Boris Johnson por reformas na estrutura econômica do streaming.

Nos Estados Unidos, uma nova organização ativista, a Union of Musicians and Allied Workers, vem travando uma guerrilha contra o Spotify, exigindo pagamentos maiores.

A porcentagem paga em forma de royalties e a propriedade das gravações vêm sendo examinadas com mais atenção do que no passado. E mesmo as regras fundamentais de contabilidade do setor de streaming estão passando por um novo exame.

As demandas dos artistas vêm entremeadas por raiva e ansiedade quanto à degradação do trabalho criativo. Mas os músicos enfrentam obstáculos graves. A despeito da solidariedade entre muitos dos artistas mais velhos e independentes, os músicos pop de maior sucesso no momento em geral mantêm o silêncio sobre a questão.

E embora muitos músicos retratem o Spotify como o inimigo, foi a transição para o modelo de streaming, nos últimos dez anos, que restaurou o crescimento do setor de música depois de anos de declínio financeiro.

ilustracao com fundo verde bandeira com varias maos na parte inferior tentando pegar uma moeda na parte superior
capa ilustrada 22.03 streaming de musica - Silvis

“Essa coisa toda é uma discussão ociosa”, disse Tom Gray, da banda Gomez, cujas avaliações do streaming na mídia social, identificadas pelo hashtag #BrokenRecord, deram ao movimento uma identidade viral.

“Será que teremos a capacidade de aproveitar o momento e apresentar um argumento para capturar a imaginação das pessoas quanto a um problema que existe há anos e que só está ficando pior?”

As queixas dos artistas sobre o streaming surgiram mais ou menos no mesmo momento em que o streaming apareceu.

Pouco depois de o Spotify chegar aos Estados Unidos, em 2011, músicos começaram a vasculhar suas declarações de royalties e a reclamar das frações de centavo que recebiam a cada vez que uma de suas canções era clicada.

Na época, o streaming era um modelo ainda não comprovado. Agora, com Spotify, Apple Music e serviços da Amazon, Tidal, Deezer e outros, ele se tornou o modo dominante de consumo de música, respondendo por 83% da receita do setor de música nos Estados Unidos.

O Spotify, que hoje tem 356 milhões de usuários em todo o mundo, 158 milhões dos quais pagantes, pagou mais de US$ 5 bilhões aos detentores de direitos musicais em 2020.

O cerne das críticas é a maneira pela qual o dinheiro é distribuído. As grandes gravadoras, depois de sofrerem uma dolorosa contração por boa parte da década de 2000, agora apresentam lucros imensos.

Mas parte insuficiente dos pagamentos dos serviços de streaming chega aos músicos, dizem os ativistas, e o modelo adotado pelas grandes plataformas tende a pagar muito aos astros, em detrimento de todos os demais. Já que a quantidade de música lançada, hoje, é maior do que em qualquer momento do passado, ficou praticamente impossível ganhar a vida com música, para qualquer artista que não seja um astro, dizem os críticos.

“Da forma que vejo, não estamos em um período de expansão”, disse Damon Krukowski, do grupo Damon & Naomi, que é membro fundador da Union of Musicians and Allied Workers. Da perspectiva dos músicos individuais, a tendência é de queda da recompensa por nosso trabalho.”

Parte da disputa se relaciona à economia básica do streaming. Spotify, Apple Music e a maioria das demais grandes plataformas usam um sistema pró-rata de distribuição de royalties.

Sob esse modelo, todo o dinheiro recolhido dos assinantes ou da publicidade em um dado mês vai para um fundo unificado, e o total em seguida é dividido pelo número de execuções de faixas musicais via streaming. Se, por exemplo, Drake respondeu por 5% das execuções em serviços de streaming naquele mês, ele (e as companhias que cuidam de sua música) receberia 5% do dinheiro do fundo —o que significa que, na prática, ele receberia 5% do dinheiro pago por cada usuário, mesmo aqueles que jamais ouviram sua música.

O sistema, dizem os críticos, favorece os artistas com apelo de massa. Recursos como as playlists (ou seja, canções selecionadas para fazer parte de listas que às vezes têm número imenso de seguidores) e recomendações algorítmicas, eles dizem, também contribuem para um efeito de rede no qual popularidade tende a gerar ainda mais popularidade, pondo os gêneros musicais de nicho em desvantagem e gerando uma imensa disparidade entre os privilegiados e os excluídos do ramo musical.

Estimativas setoriais avaliam o valor pago pelo Spotify pela música em cerca de US$ 4.000 para cada milhão de execuções, ou menos de meio centavo de dólar por execução. Porque esse dinheiro pode passar por uma gravadora antes de chegar ao artista, centenas de milhões de execuções podem ser necessárias antes que um artista obtenha ganhos substanciais.

A Union of Musicians and Allied Workers apelou ao Spotify que aumente o valor de seus pagamentos para um centavo de dólar por execução, o que pode ser impossível sob o modelo de negócios atual da empresa —que diz pagar cerca de dois terços do dinheiro que recebe aos detentores dos direitos e que esse montante depende de quantos usuários e execuções estão acontecendo no serviço em qualquer dado momento.

O Spotify também tem usuários que não pagam e ouvem música em um formato que inclui publicidade, e isso reduz a quantia média com que cada ouvinte contribui para o fundo geral.

A Apple, que não tem usuários gratuitos —e está envolvida em uma batalha conta o Spotify sobre questões antitruste na Europa— aproveitou essa oportunidade para anunciar que seu serviço Apple Music paga em média um centavo de dólar por execução, computando os pagamentos relacionados às gravações e pagamentos aos compositores.

Em março, o Spotify divulgou um relatório online, “Loud & Clear”, com o objetivo de oferecer detalhes sobre sua estrutura de pagamentos e responder aos apelos dos músicos por transparência. O relatório se tornou uma espécie de filtro para determinar opiniões sobre o papel da empresa como pagadora do setor.

Para o Spotify, o relatório serve como prova de que seus pagamentos são robustos e de que cada vez mais artistas estão faturando quantias substanciais. No ano passado, 870 artistas de seu catálogo receberam mais de US$ 1 milhão em pagamentos, mais que o dobro do número de artistas que chegaram a esse marco em 2017, de acordo com o Spotify. A empresa pagou mais de US$ 100 mil a 7.800 artistas.

De acordo com o Spotify, 57 mil artistas são responsáveis por 90% das faixas executadas na plataforma a cada mês.

“Todos os números que estamos vendo nos levam a sentir muita confiança em que o setor é menos dominado pelos hits e pelos astros, agora, e que oferece muito mais apoio a gêneros musicais de nicho e seus fãs”, disse Charlie Hellman, vice-presidente do Spotify, em uma entrevista.

Para muitos artistas e críticos, esses mesmos números contam uma história diferente. O número de artistas que geraram mais de US$ 1.000 em pagamentos foi de 184 mil —mas já que o Spotify abriga mais de 6 milhões de perfis de artistas, isso significa que 97% deles não atingiram esse nível.

O Spotify rebate que apenas 472 mil artistas superaram um determinado limiar de atividade profissional, que a companhia define como ter lançado mais de dez faixas e ter atraído mais de mil ouvintes em um mês em algum momento de 2020; 5,6 milhões dos artistas presentes no serviço não lançaram mais de dez faixas no total.

Mas, mesmo dentro do subconjunto de artistas presumidamente profissionais, no máximo 39% faturaram pelo menos US$ 1.000 no Spotify em 2020.

Em outubro, o comitê digital, de cultura, mídia e esporte do Parlamento britânico abriu um inquérito sobre a economia do streaming de música, e as audiências —que envolveram questionamento agressivo de executivos de gravadoras e de empresas de tecnologia— fascinaram o setor.

Em entrevista, Kevin Brennan, parlamentar pelo Partido Trabalhista britânico e crítico declarado do setor de streaming, disse que o comitê pode vir a considerar “se esse é um setor no qual há motivos para a existência de um ombudsman ou autoridade regulatória independente para determinar se ele opera de maneira justa para com os músicos e consumidores”.

Alguns dos depoimentos mais duros tratavam não dos serviços de streaming, mas das grandes gravadoras.

Por mais críticos que os músicos sejam quanto ao streaming, eles muitas vezes reservam o pior de suas queixas às gravadoras e aos termos de contrato que elas impõem, como o valor dos royalties e a recuperação de custos, que pode manter as contas de um artista no vermelho por anos. E a propriedade dos direitos autorais? Pergunte a Taylor Swift ou Kanye West o quanto isso é importante.

Um exemplo dessa tensão é a dupla pop Frenship, de Los Angeles. Em 2016, a dupla, formada por Brett Hite e James Sunderland, conquistou seu primeiro sucesso com “Capsize”, gravado com a cantora e compositora Emily Warren.

A dupla lançou a canção de modo independente e ela rapidamente foi adicionada a uma playlist famosa do Spotify. “Capsize” recebeu 40 milhões de execuções em dez semanas, e gerou US$ 150 mil em pagamentos, segundo a dupla. “O Spotify nos deu nossa carreira”, disse Hite em entrevista.

Em seguida a dupla assinou um contrato com a Columbia Records, que iniciou uma campanha de promoção no rádio para “Capsize”. A canção não chegou aos 40 mais na parada Billboard Hot 100, mas continuou a fazer sucesso considerável no streaming, tendo obtido mais de 570 milhões de execuções no Spotify.

A banda se recusou a revelar detalhes específicos do período em que esteve sob contrato com a Columbia —o acordo de separação com a gravadora, assinado em 2018, envolve uma cláusula de confidencialidade—, mas Hite encapsulou sua experiência com as grandes gravadoras contando uma história sobre comprar um carro nos meses que se seguiram ao sucesso de “Capsize”.

“Eu estava pensando em comprar um BMW, mas, quando vi a divisão do dinheiro, acabei fazendo um leasing de um Honda CR-V”, disse ele. “Que essa seja a narrativa sobre o que nosso grande sucesso nos deu.” A Columbia Records não quis comentar.

A despeito das queixas dos artistas sobre suas gravadoras, os contratos com as grandes gravadoras nos últimos anos vêm evoluindo de maneiras que beneficiam os artistas. Acordos de joint venture e compromissos mais curtos se tornaram mais comuns, de acordo com executivos de música, advogados e empresários de artistas.

E a importantíssima taxa de royalty também está subindo. Um estudo conduzido por Steven Wildman, da Universidade Estadual do Michigan, em 2002, avaliou centenas de contratos de músicos com grandes gravadoras, naquele período, e determinou que em média os artistas que estavam assinando seu primeiro contrato com uma grande gravadora recebiam royalties de entre 15% e 16%.

Falando ao Parlamento britânico em janeiro, Tony Harlow, presidente-executivo da Warner Music UK, disse que de 2015 para cá os royalties pagos aos artistas pela gravadora subiram de 27% para 32%. Isso pode não ajudar muito os artistas cujos contratos são antigos e que continuam a receber a taxa antiga.

A banda Eve 6, um grupo de rock alternativo cujo hit “Inside Out”, de 1998, foi executado mais de 100 milhões de vezes no Spotify, não cobriu o valor de adiantamento de seu contrato original e por isso não recebe pagamento algum pelo streaming da canção, disse o guitarrista da banda, Jon Siebels.

Campanhas online conduzidas por coalizões frouxas de músicos podem não parecer uma maneira eficaz de promover mudança. Mas elas já obtiveram mais progresso do que se esperava, conquistando não só a atenção do Parlamento britânico mas a do Spotify e Apple.

Em abril, respondendo a anos de pressão do setor de música, o Spotify elevou os preços de alguns de seus planos de assinatura nos Estados Unidos, Reino Unido e Europa, o que pode resultar em pagamentos ligeiramente mais altos para os músicos (mas apenas ligeiramente).

E algumas mudanças propostas no modelo econômico do streaming foram aceitas. Em abril, o site SoundCloud transferiu alguns artistas a um plano de royalties calculados de acordo com as preferências dos usuários —uma alternativa à contagem pró-rata que algumas pessoas no setor, entre as quais muitas organizações de defesa dos artistas, veem como um sistema mais justo e transparente.

Em lugar de destinar todo o dinheiro dos usuários a um fundo único, o modelo vinculado aos usuários segrega o que cada usuário contribui e distribui o dinheiro gerado apenas aos artistas que a pessoa ouve.

Os proponentes dizem que esse modelo gera pagamentos mais equitativos de streaming e ajuda os artistas menos famosos. Por exemplo, um fã que ouça apenas jazz teria seu dinheiro destinado apenas a artistas de jazz, e não a astros pop. Quando o SoundCloud anunciou essa mudança, destacou alguns artistas independentes cujos pagamentos mensais, afirmou a empresa, podem quintuplicar.

No entanto, como no caso de outras propostas favorecidas pelos músicos, por exemplo a adoção de um sistema de “remuneração equitativa” solicitado em uma carta recente ao primeiro-ministro britânico —um programa que daria algum dinheiro a artistas diretamente, sem passar pelas gravadoras—, o modelo vinculado aos usuários enfrenta alguma oposição no setor.

Na opinião de seus críticos, o plano teria impacto mínimo e na verdade seria menos transparente, resultando em uma situação confusa na qual o valor de um milhão de execuções por um serviço de streaming poderia ser diferente entre um artista e outro.

E, em qualquer plano de redistribuição, haverá quem ganhe e haverá quem perca. E aqueles que sairiam perdendo sob um sistema vinculado às escolhas dos usuários seriam mais provavelmente os astros pop. Quem quer dizer a Ed Sheeran ou Drake que ele passará a ganhar menos dinheiro?

Para muitos artistas, as campanhas já receberam muito mais atenção do que eles esperavam, o que pode ser encorajamento suficiente.

“Quando a questão gerou um inquérito no Parlamento, eu quis comemorar com um soco no ar”, disse Nadine Shah. “Pensei que as pessoas estavam enfim nos ouvindo. As pessoas estão levando a questão a sério. Só precisamos manter o ímpeto.”

Tradução de Paulo Migliacci

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