Um astronauta acorda a bordo de uma nave espacial, depois de ter sido mantido em coma por alguns anos. Seus companheiros estão mortos, e ele não se lembra de quem é nem o que está fazendo no local. Tampouco sabe em que lugar do universo está.
Ei, espera aí. Já vimos esse filme, não? Ou algum parecido com isso. O herói do novo livro de Andy Weir, autor do best-seller "Perdido em Marte" (que virou filme com Matt Damon), começa sua aventura de forma similar a tantos outros astronautas da ficção científica, mas daí para a frente seu destino vai ficando mais interessante.
O título em português de "Devoradores de Estrelas" dá mais spoiler do que o original, "Project Hail Mary", ou, em tradução literal, "Projeto Ave Maria".
Tudo leva a crer que se trata de uma referência não à oração cristã mas sim ao "Hail Mary pass", como é conhecido nos EUA o passe no futebol americano em que o time em desvantagem, nos segundos finais do jogo, atira a bola o mais longe possível para tentar ganhar pontos ou fazer um touchdown. A referência a Nossa Senhora vem do fato de que só com intervenção divina tal jogada desesperada pode dar certo.
A nave no livro de Weir se chama Hail Mary; lançada pelos terráqueos ao espaço, a missão é a última esperança do planeta frente à aniquilação da raça humana, daí o paralelo esportivo. Qualquer relação com o futebol americano, porém, pára por aí, já que o tomo parece ter sido escrito especialmente para deleite dos nerds da ciência.
Assim como em "Perdido em Marte", o protagonista de "Devoradores", que depois descobrimos chamar-se Ryland Grace, depende de seus conhecimentos sobre biologia, cosmologia, física e química e de sua capacidade de usar o método científico —fazer hipóteses, testá-las, reproduzir os resultados— para sobreviver e salvar a Terra.
As mais de 400 páginas do livro são divertidas e de leitura rápida, apesar dos trechos com explanações científicas mais ou menos plausíveis. Os diálogos, mesmo quando acontecem só dentro da cabeça de Grace, são engraçados e parecem ter sido feitos sob medida para virar um filme de Hollywood ou uma série da Netflix.
Não há lutas com lasers no espaço nem corrida de naves espaciais; um dos momentos de maior tensão do livro acontece quando o astronauta precisa que uma ameba se reproduza num criadouro. As tais amebas, assim como os aliens, têm mais carisma que o pobre Grace, porém, cujo personagem é tão pouco desenvolvido que poderia ser trocado por qualquer cientista genérico sem prejuízo da trama.
"Devoradores" compartilha com a trilogia de Liu Cixin, "O Problema dos Três Corpos", a presença de alienígenas completamente inesperados. Na obra de Liu, porém, a ameaça extraterrestre à Terra se desenrola ao longo de séculos de desespero existencial e guerras, enquanto no tomo muito mais alegre de Weir a ciência e a engenhosidade humanas sempre vencem no final.
No mundo ficcional de "Devoradores", a humanidade se une e dedica todos os seus esforços e seu conhecimento científico, sem reservas, a sobreviver; sem contar o final, bem, basta dizer que Weir é um otimista.
Infelizmente, no mundo real, ainda que os terráqueos tenham conseguido desenvolver vacinas contra a Covid em tempo recorde, a pandemia do coronavírus nos ensinou que, diante de uma ameaça global, nada garante que a humanidade se una e confie na ciência para se salvar.
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