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depoimento

Tinhorão reclamou de tosse, autógrafo, ereção e Glauber Rocha no bar

'Não sinto dor, não sinto nada. Eu sinto raiva, explicou. Eu já estou na bola sete', disse o crítico ao puxar sua cadeira

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A mesa de bar servia de gabinete para os despachos profissionais do crítico e historiador José Ramos Tinhorão, morto na última terça, em São Paulo, aos 93 anos. Com frequência, pesquisadores, editores e documentaristas ficavam à espreita durante suas saídas da toca. Seu ponto fixo era o bar Amélia, na Vila Buarque, onde exercia, aos sábados, a arte do papo livre de boteco.

Numa tarde de abril de 2018, havia um grande anseio pela chegada de Tinhorão, figura central nas reuniões de amigos. Todos estavam preocupados. Por telefone, ele se queixara de uma gripe, mas não dera mais notícias. Às quatro da tarde, o crítico chegou de sobrancelhas erguidas e puxou sua cadeira. Sim, estava doente e faria exames. Tosse maldita. “Não sinto dor, não sinto nada. Eu sinto raiva”, afirmou. “Eu já estou na bola sete.”

Apesar do mal-estar, Tinhorão não se furtou a um copo de vinho português Alandra e outro de cachaça. “Não sei se irei ao lançamento do meu livro ["Primeiras Lições de Samba e Outras Mais", no dia seguinte, no Instituto Moreira Salles]. Não estou me sentindo bem. Além do mais, quer coisa mais horrorosa do que autógrafo?”

O crítico musical e historiador, José Ramos Tinhorão - Raquel Cunha/Folhapress

O humor de mau humor cresce. “Estou com boa memória. Mas a memória não serve para nada. Está vendo aquele coxão ali?” Do outro lado da rua, passava uma garota. “A memória não come mais aquele coxão. E, se o pau não levantar, não adianta.” À sua frente, um amigo aproveitou a sugestão erótica e o questionou sobre seu velho projeto de livro com histórias de sacanagem. “Pois é. Queria ter tempo!”

"Gosto de gente em doses homeopáticas", comentou um músico, apoiando sua recusa a noites de autógrafos. “É isso aí”, aprovou Tinhorão. “Eu também me sinto assim. No início, a gente luta para publicar, fica ansioso, comemora quando lança. Depois de mais velho, tudo cansa. Não tenho mais élan. Tudo vira trabalho. E eu não aguento mais.”

O ar de cansaço ficou mais forte. “Eu trabalhava de copidesque. No Jornal do Brasil, eu entrava às seis e saía à meia-noite da redação. Antes disso, ficava escrevendo, atendia a demandas do caderno B. Trabalhava feito um burro de carga. O corpo não aguenta depois de um tempo.”

Outra vez, retornou ao papel de enfermo. “Estou doente. Faça umas anotações sobre o que você deseja de mim. Poderia ser algo na linha 'conversas com um quase defunto'.”

Atento a conversas paralelas, Tinhorão quer saber de qual filme estão falando ao seu lado. “Glauber não era amigo de ninguém”, reagiu. “Ele só tinha tempo para realizar os próprios projetos. Nunca me esqueço que quando eu estava trabalhando na Abril, num lugar horroroso chamado Veja, fui para um restaurante que havia lá e Glauber estava numa mesa cheia. E gritou algo como ‘Tinhorão, a língua inimiga da bossa nova’.”

Um breve minuto em silêncio. E logo cantarolou, baixinho, uma canção de Noel Rosa. "De babado, sim/ Meu amor ideal/ Sem babado, não”. Era o estribilho usado em intervalos comerciais do programa de Ademar Casé, nos anos 1930.

"Casé era um virador nordestino e começou a vender o aparelho de rádio da Philips, que tinha um alto-falante separado. Vendia de porta em porta, no Rio. Depois, a Philips se tornou um canal de rádio e ele passou a ter um espaço aos domingos para vender os aparelhos, com atrações musicais. Não havia nenhum programa igual ao Casé."

Mais animado, e mudando de assunto, lembrou uma entrevista com o sambista Ismael Silva como um de seus feitos de pesquisador. “Ismael Silva era homossexual. Ativo. Ativo. Ele sabia que eu sabia. Mas não toquei no assunto. Nem ele comigo quando fiz essa entrevista. Na época, com ele vivo, eu não publiquei essa informação. Quando veio esse livro [“Música e Cultura Popular”], eu pus.”

Nessa tarde, ele acertou a cerimônia de lançamento de seu novo livro. Tudo combinado. No entanto, seu amigo avisou que a equipe do Instituto Moreira Salles pedira que ele chegasse uma hora e meia antes, no dia seguinte. Queriam a cortesia de uma conversa.

Tinhorão armou mais uma vez as sobrancelhas: “Não tenho nada para conversar. O importante é o meu acervo, que eles compraram. Eles têm que se debruçar sobre aquela porra. Eu não tenho mais importância.”

Tinhorão bebeu. Tossiu. Precisava fazer exames. Tomou um gole de cachaça.

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