Dois anos após a explosão de “Avôhai” e um depois do lançamento de seu segundo álbum, que trouxe “Admirável Gado Novo”, em abril de 1980, no auge do sucesso, Zé Ramalho voltou a sua Paraíba para apresentar pela primeira vez o repertório que o alçou à fama.
Antes do show para mais de 4.000 pessoas no ginásio do Clube Astréia começar, foi procurado por uma comissão do Partido dos Trabalhadores, o PT. Pediam que ele lesse no palco um manifesto de repúdio à prisão do líder metalúrgico Luis Inácio da Silva, o Lula.
O cantor e compositor se negou e, também, se recusou a pôr seu nome num abaixo-assinado. “Sou um artista e não um político; tudo o que tinha a dizer está nas minhas músicas”, declarou ele, segundo documentaram jornais da época.
No dia seguinte, um dos principais jornais locais estampavam uma dura crítica ao conterrâneo famoso, intitulada “entre a massa e o gado” e assinada por Carlos Antônio Aranha, colega com quem Zé outrora dividiu palcos em João Pessoa.
O jornalista cutucou a onça com vara curta e, no mesmo dia, sentiu no corpo a força da vingança —saindo da cidade, Zé Ramalho pediu para o motorista do ônibus que carregava toda sua banda parar na frente da Redação do jornal A União, desceu, pediu que chamassem Aranha na portaria, acertou um soco nele, e entrou no ônibus deixando o homem sangrando e prometendo não voltar tão cedo à capital paraibana.
Zé Ramalho, que nunca se posicionou politicamente, foi obrigado a se posicionar neste sábado, quando viu que parte dos artistas que participavam de um novo álbum do cantor Sérgio Reis começaram a se retirar do projeto devido ao áudio vazado em que o sertanejo combinava um complô contra a democracia.
A diferença do que aconteceu anteontem, quando ele se retirou do álbum de Sérgio Reis, é que, agora, Zé voltou a declarar que não se pronunciará, mas pelo menos incluiu seu nome no abaixo-assinado histórico em que Guarabyra, Maria Rita e Guilherme Arantes também puseram os seus.
Guttemberg Guarabyra foi o primeiro a sair do projeto. Ele desistiu de gravar com Sérgio Reis “Sobradinho”, parceria sua com Luiz Carlos Sá de 1977. Guilherme Arantes relutou, tentando dissociar o artístico do “terreno extramusical”, mas também acabou se retirando do quase finalizado álbum e desautorizou o cantor a incluir no disco o dueto na canção “Planeta Água”, de 1981.
Maria Rita fez como Zé Ramalho. Não se pronunciou, mas por meio de sua assessoria informou à imprensa que não emprestaria sua voz para uma regravação de “Romaria”, clássico de 1977 assinado por Renato Teixeira.
Amigo e parceiro de Sérgio Reis na música caipira, Teixeira não vetou a composição até agora, mas parece ter deixado uma indireta em seu Instagram. “A democracia é um bem conquistado a duras penas. A música é uma arte democrática. Portanto, jamais usarei meu prestígio para tentar usurpar o nosso sistema democrático”, escreveu.
No sábado, Zé Ramalho enviou por meio de sua produtora, a Avôhai Music, uma nota anunciando que desautoriza o lançamento em qualquer suporte, físico ou digital, da composição de sua autoria “Admirável Gado Novo”, autorizada e gravada pelo sertanejo no início de 2019.
Diz a nota que “a gravação perdeu o sentido e tanto o compositor quanto sua editora não autorizarão a utilização da obra". "Solicitamos ao escritório do cantor Sérgio Reis que não utilize o fonograma de forma alguma. Pedimos ainda que se abstenha de usar por meios radiofônicos, eletrônicos ou qualquer outro, para que esta faixa não seja veiculada de forma alguma. O artista declara que é tudo que tem a dizer sobre esse assunto e não mais se pronunciará.”
O artista paraibano nunca se pronunciou publicamente, mas colegas de trabalho falam entre dentes que ele tendia a apoiar o atual presidente na época das eleições. Como biógrafa de Zé Ramalho, nunca arranquei posicionamento político dele em nossas conversas, mas o ouvi dizer que eu estava “muito petista” na época em que eu critiquei abertamente em minhas redes sociais o processo de impeachment de Dilma Roussef.
Depois que me indignei e iniciei um debate com meu biografado, assistida por dois representantes de uma editora que, na época, pensava em lançar o livro, ele tirou de tempo e amenizou. “Não leve tão a sério o que eu digo.”
“Zé Ramalho não mais se pronunciará”, diz a nota e diz o seu comportamento nesses 43 anos de carreira. Não à toa, nada tem publicado em sua página no Facebook. A nota foi enviada diretamente à imprensa e publicada no perfil pessoal de um de seus empresários, sócio do escritório Jerimum Produções que vende shows de Zé Ramalho. Mas será que ele é obrigado a se pronunciar?
Nos anos 1980, Zé era comumente chamado de “pau-de-arara” em reportagens de jornal e foi abandonado pelo mercado após ser acusado de plágio (a revista em quadrinhos da qual tirou um verso para “Força Verde” é que tinha plagiado o poeta irlandês William Yeats, mas foi o paraibano quem pagou o pato). Depois de ser tão criticado pela imprensa e até por públicos desavisados, vale a pena entrar nessas brigas e ver sua estabilidade abalada mais uma vez?
Carlos Aranha decretou, em 1980, depois do episódio que quase o fez prestar queixa à polícia que “Zé Ramalho está despreparado para receber qualquer tipo de opinião” e que o artista “reza a cartilha de um descompromisso que, agora, passa a ser a alienação frente à realidade do país”.
Pois bem, chegamos a 2021 e, hoje, novamente, quem fica quieto naturalmente acaba escolhendo um lado. Zé Ramalho prefere ficar na dele, mas aprendeu com o episódio de 1980 que há um limite. E, antes tarde do que nunca, o compositor que deu muito mais do que recebeu foi esperto ao sair fora dessa barafunda em que Sérgio Reis se meteu.
Não à toa, seus fãs, mesmo sem saber de fato o posicionamento político de Zé Ramalho, estão celebrando nas redes a atitude deste que cantou a “Vida de Gado” do brasileiro comum.
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