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Mulheres viram o faroeste do avesso e enterram o macho incomível e imbrochável

Tão distante dos arquétipos, nova safra de westerns nem parece fazer parte do mesmo gênero de John Ford

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Cena do filme 'Cowboys', dirigido por Anna Kerrigan, que faz parte de uma safra que vira do avesso os arquétipos do faroeste

Cena do filme 'Cowboys', dirigido por Anna Kerrigan, que faz parte de uma safra que vira do avesso os arquétipos do faroeste Divulgação

Ribeirão Preto

Caubóis embrutecidos, mulheres que não são nada além de objetos sexuais e planícies intocadas à espera do colonizador são, no imaginário popular, quase sinônimos de filmes de faroeste.

São também, no entanto, elementos cada vez mais presos ao passado, conforme uma geração de diretoras vira do avesso o gênero, que já rendeu para Hollywood o que hoje rendem os super-heróis.

Na esteira dos machos sensíveis e das mulheres impositivas que começaram a povoar a trama desses filmes no fim da década passada, as diretoras agora adentram o ambiente doméstico para explorar relações afetivas complexas e inesperadas para o gênero.

“Cowboys”, que chega nesta sexta-feira ao YouTube e a outras plataformas de streaming, é o mais recente dessa safra, da qual também fazem parte “First Cow”, de 2019, que pode ser visto no Mubi, e “Ataque dos Cães”, que chega em dezembro ao catálogo da Netflix vindo do Festival de Veneza, que laureou sua realizadora, Jane Campion, com o prêmio de melhor direção.

“Cowboys” acompanha a jornada catártica de autodescoberta que o pequeno Joe, um garoto trans de dez anos, precisa travar pelo direito de ser o menino que sempre foi, embora tenha crescido encoberto pelos casacos e botas cor-de-rosa que nunca quis usar.

“É divertido sair para passear à noite, ir para o bar com os amigos, ir pescar, caçar”, diz a mãe de Joe, vivida por Jillian Bell, quando o marido, interpretado por Steve Zahn, revela a identidade de gênero do filho. “Quem é a idiota que fica trancada em casa, lavando a louça e limpando a porra do banheiro? É claro que ela quer ser homem. Quem escolheria ser mulher?”, questiona a mãe, aos prantos, num aceno às demandas feministas.

É uma pergunta que ela se arrepende de ter feito ao entender que, embora tenha razão ao criticar o machismo estrutural que impõe à mulher as tarefas domésticas, negar a existência de pessoas trans não tornará o mundo mais justo.

Mas já é tarde demais. Numa dessas discussões, Joe pede socorro ao pai, que aceita mais facilmente sua identidade e decide proteger o garoto da mãe —ou assim ele pensa—, fugindo com ele dos Estados Unidos para o Canadá.

Numa narrativa entrecortada pelo passado infeliz de Joe como menina e pelo presente da fuga com o pai, investigada pela polícia como um sequestro, a diretora Anna Kerrigan, que também escreveu o filme, subverte todos os arquétipos do faroeste, produzindo a obra que ela própria gostaria de ver, mas raramente encontrava.

“Os faroestes estão enraizados em nós, americanos. Fazem parte da nossa cultura. Gosto de alguns poucos que têm desenvolvimento de personagem, mas fico entediada com a maioria, porque os personagens são muito limitados, além do fato de que mulheres, pessoas negras e LGBTQIA+ sempre foram excluídos dessas narrativas”, diz Kerrigan.

As subversões da cineasta não se restringem à criança trans como protagonista, mas se estendem a todos os personagens, da investigadora responsável pelo caso da família na política, mais competente do que qualquer um de seus parceiros, ao pai, exposto à fragilidade por meio do alcoolismo e do transtorno de bipolaridade que sofre.

Ao extrapolar o perímetro urbano, a narrativa adentra um cenário montanhoso difícil de ser desbravado, numa fotografia que intercala planos abertos para demonstrar o isolamento e o perigo que os personagem correm com planos fechados que acentuam a fragilidade emocional deles.

É uma fotografia parecida com a de “First Cow”, protagonizado por um americano e um chinês que criam uma amizade inusitada ao se encontrarem no mato e decidirem formar uma parceria para produzir biscoitos com leite contrabandeado da única vaca que existe na região, de um comerciante rico vindo da Inglaterra.

Mais contemplativo do que “Cowboys”, com uma câmera que se volta com frequência para objetos pouco significativos à primeira vista, a história questiona os alicerces sobre os quais os Estados Unidos se ergueram, a começar pelo cenário, o Oregon de 1820, onde já haviam conflitos entre colonizador, nativos e imigrantes antes da marcha para o oeste.

Professor de cinema na Universidade Federal de Sergipe, Cesar Castanha, que estuda a obra de Kelly Reichardt, a diretora de “First Cow”, diz que essa nova safra de faroestes é calcada em contextos históricos e sociais ignorados por diretores como John Ford, de obras como “No Tempo das Diligências”, de 1939, que consolidou símbolos do gênero.

“Essa diretora mostra o oeste que se construiu habitado por populações múltiplas que viviam em crise constante, em meio à violência, à precariedade e ao cansaço. Na jornada deles, vai haver matas perigosas no caminho, vai haver um escuro muito escuro, que dá medo em qualquer um, seja homem, seja mulher. É um retrato menos ingênuo dessa marcha para o oeste”, diz.

A Kerrigan e Reichardt se junta Jane Campion, que, embora seja neozelandesa, escolheu ambientar “Ataque dos Cães” no velho oeste. É a história de Phil, papel de Benedict Cumberbatch, um rancheiro que poderia pegar emprestado os adjetivos criados por Bolsonaro para se descrever —imorrível, imbrochável e incomível.

No início, Phil é constantemente visto maltratando o enteado de seu irmão, Peter, que não esconde sua homossexualidade nem se importa que alguém considere feminino o seu modo de falar, gesticular ou se vestir.

Pouco a pouco, no entanto, a dupla desenvolve uma relação que perfura a couraça de Phil e revela inseguranças profundas que ele tem por não sentir que sua vida pertence àquele lugar, embora seja um macho alfa.

Numa história em que cada um tem um segredo a esconder e uma insegurança a enfrentar, Peter, tão deslocado entre os caubóis e o cenário pouco convidativo à diferença, acaba por ser o único personagem que alcança a plenitude na narrativa.

Professor de cinema na Universidade Federal de Pernambuco, Rodrigo Carrero, que escreveu um livro sobre o faroeste italiano, conhecido como western spaghetti, diz que a derrocada do gênero nas bilheterias, a partir dos anos 1960, é um dos fatores que motivam sua reinvenção.

Num cenário em que a contracultura borbulhava, refutando o patriotismo expansionista que levou à Guerra do Vietnã, tudo que era valorizado por caubóis como John Wayne não fazia mais sentido.

Houve uma tentativa de reinventar o estilo, com indígenas passando de inimigos a injustiçados, mas as subversões da época, todas feitas por homens, não incluíam temas como identidade de gênero e orientação sexual.

Hoje, diz o professor, isso vem à tona mais uma vez, mas agora não a reboque de um resgate das bilheterias, já que, embora esses filmes acumulem prêmios pelos festivais onde passaram, eles mal chegam às salas de cinema ou às plataformas mais populares de streaming.

​"O faroeste virou um gênero quase morto. Isso permite que ele seja muito mais reflexivo sobre questões sociais", diz Carrero. "Hoje, como há muito mais mulheres dirigindo e ganhando espaço por trás das câmeras, é natural que tenhamos mais narrativas como essas. As minorias sociais estão se retratando, e não sendo retratadas."

E de onde vieram esses, há muitos mais —não só na ficção. O documentário "Bitterbrush", de Emelie Mahdavian, é um deles. Ainda pouco distribuído nos Estados Unidos e sem previsão de chegar ao Brasil, é uma obra que disseca a rotina de duas vaqueiras que vivem num rancho solitário em Idaho, outro estado que integrou o chamado velho oeste e é herdeiro daquela tradição.

"Essas diretoras cresceram assistindo aos filmes do John Ford, mas sabem que a marcha para o oeste foi diferente", diz Castanha. "Elas estão revisitando uma identidade muito intrínseca aos americanos, que é importante para elas próprias, mas nunca foram feitas de uma perspectiva realista."

Cowboys

  • Quando Estreia nesta sexta-feira (8)
  • Onde Claro Now, Amazon, Vivo Play, iTunes, Apple TV, Google Play e YouTube Filmes
  • Preço R$ 14,90 (aluguel) e R$ 29,90 (compra)
  • Elenco Jillian Bell, Sasha Knight e Steve Zahn
  • Produção EUA, 2020
  • Direção Anna Kerrigan

First Cow - A Primeira Vaca da América

  • Quando Disponível no Mubi
  • Classificação 12 anos
  • Elenco John Magaro, Orion Lee, Alia Shawkat
  • Produção Estados Unidos, 2019
  • Direção Kelly Reichardt

Ataque dos Cães

  • Quando Disponível na Netflix em 1º de dezembro
  • Elenco Benedict Cumberbatch, Kirsten Dunst, Kodi Smit-McPhee
  • Produção Estados Unidos, 2021
  • Direção Jane Campion
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