Machos sensíveis e mulheres impositivas remodelam os filmes de faroeste

Movimentos #MeToo e Time's Up influenciam o gênero, que é espelho da sociedade americana

Jake Gyllenhaal em cena do filme 'The Sisters Brothers', exemplo de faroeste revisto

Jake Gyllenhaal em cena do filme 'The Sisters Brothers', exemplo de faroeste revisto Divulgação

Guilherme Genestreti
Berlim (Alemanha)

O cinema americano plasmou a imagem de caubóis sisudos, embrutecidos e um tanto impenetráveis. Essa couraça, contudo, vem sendo perfurada pelo furor dos movimentos feministas #MeToo e o Time’s Up, que estão entre as forças que moldam um novo velho oeste nas telas.

No último ano, foram lançados seis títulos nessa nova toada, carregados de diversidade racial e mea-culpa colonial, e povoados por machos sensíveis e mulheres impositivas.

É uma guinada que vem alimentada por Hollywood, bastião liberal da América, e recai justamente sobre o gênero por excelência da produção ianque, espelho centenário dos valores daquele país. 

Lançado quatro meses após a revelação do escândalo Weinstein, o longa “Damsel”, sem data prevista para estrear no Brasil, parece feito sob medida para saciar a grita por igualdade de gêneros. Sua mensagem fica clara no título —“donzela” em inglês—, que ironiza histórias sobre mocinhas em perigo.

A australiana Mia Wasikowska, de “Alice no País das Maravilhas”, é quem faz a dama em apuros, ou melhor, a sua antítese. Noiva do abobalhado Samuel, vivido por Robert Pattinson, ela foi raptada por um bandido. O que a trama revela, entretanto, é que a moça não é nenhuma parva à espera de um machão que a resgate.

“Ela é uma tela em branco sobre a qual todos projetam uma imagem, mas que o filme trata de subverter”, disse a atriz a um pequeno grupo de jornalistas, no último Festival de Berlim, em fevereiro. “Escolhi essa personagem porque ela tem voz própria”, completou, emendando um discurso afinado ao Time’s Up e afins. 

Os texanos David e Nathan Zellner, diretores de “Damsel”, escancaram logo no início da história a intenção de quebrar as expectativas dos que esperam ver os clichês do faroeste.

No prólogo, com uma atmosfera digna de “Esperando Godot”, um pastor desencantado aguarda o trem que o levará de volta para o leste enquanto um sujeito mais jovem, empolgado, não vê a hora de se aventurar no oeste. Na cena seguinte, o outrora entusiasmado empreendedor já é um bêbado decepcionado.

“Existe uma idealização sobre o que foi a expansão dos pioneiros. Queríamos contrapor isso à visão de quem viu a realidade”, afirma Nathan.

Ele crê que “a fórmula faroeste ficou entediante”. “Aquilo do herói impermeável e da mulher que ou é uma prostituta ou precisa ser salva já era.” 

Mia Wasikowska em cena do filme 'Damsel'
Mia Wasikowska em cena do filme 'Damsel' - Divulgação

A “Damsel” se soma “The Sisters Brothers”, que rendeu o prêmio de direção ao francês Jacques Audiard no Festival de Veneza e parte da figura do caubói para discutir masculinidade. Já “Hostis” promove as pazes com os índios, heresia aos olhos do cânone.

O revisionismo lembra o esforço de diretores como Robert Altman e Sam Peckinpah, nos anos 1960 e 1970, mas agora sob códigos de um mundo sacudido por Donald Trump.

 Netflix também depositou suas fichas nesse faroeste reformulado, que revisita os filmes de caubói sob à luz de um novo tipo de feminismo.

No serviço sob demanda desde novembro do ano passado, a minissérie “Sem Deus” (“Godless” no original) traz um regimento inteiro de vaqueiras. A trama é ambientada num vilarejo de maioria feminina que precisa se armar contra homens foras da lei.

Marketing à parte, não demorou para que as críticas apontassem que só 27% das falas no primeiro episódio são pronunciadas por mulheres e que no coração da trama há um embate entre dois homens, o mocinho e o bandido.

O tiro também sai pela culatra no filme “Uma Mulher Exemplar”, de Susanna White, que, sob o pretexto de dar proeminência à personagem feminina, acaba varrendo para baixo do tapete a verdade dos fatos tal como se deram.

A obra remonta o contato entre uma artista de origem europeia (Jessica Chastain) e o líder do povo sioux, Touro Sentado, então em conflito com os brancos. O filme faz crer que foi ela quem avivou no chefe indígena a faísca da rebelião, embora fora da ficção o sujeito já fosse politizado, como apontou crítica do jornal The New York Times.

“Hostis”, de Scott Cooper, é outro que almeja apagar as chagas do colonialismo perpetuadas pelo western clássico. 

Christian Bale faz um soldado encarregado de conduzir com segurança uma família de índios cheyenne de volta a seu território. A epígrafe que abre o filme, extraída do escritor D. H. Lawrence, faz um contraponto crítico à exaltação dos pioneiros: “A verdadeira alma americana é dura, isolada, estoica e assassina”.

Embora não vilanize índios, como nas produções do passado, “Hostis” tampouco dá a eles alguma primazia, deixando aos brancos o heroísmo. Opta ainda por uma mensagem de conciliação de raças que não traduz os embates que marcaram o período. 

A própria mitologia do faroeste, impulsionada por John Ford, Howard Hawks e outros expoentes, está alicerçada em símbolos pouco fidedignos. 

Na época da marcha para o oeste, segundo historiadores, aquelas terras americanas estavam nas mãos de fazendeiros de origem hispânica, e os vaqueiros que disseminaram a figura do caubói eram, ao que tudo indica, negros que fugiram dos estados do Sul nos anos seguintes à Guerra Civil. 

Para a ficção, aquele mundo de amplos espaços abertos servia como cenário perfeito para figuras que exaltavam o ideal do “self-made man”, tão caro aos americanos. Foi quando o caubói embranqueceu e virou epítome do país. 

Não por acaso, foi esse o universo que o cineasta francês Jacques Audiard escolheu para rodar seu primeiro longa de língua inglesa, “The Sisters Brothers”. Ancorada em quatro personagens homens, vividos por Joaquin Phoenix, John C. Reilly, Jake Gyllenhaal e Riz Ahmed, a obra revira os confins da masculinidade.

Phoenix faz o irmão durão e Reilly faz seu contraponto doce, emotivo e redentor —figura frágil que decerto desagradaria a John Wayne e seus tipos severos e monocórdicos.

Foi, aliás, diante de uma estátua de cera do ator, segundo quem negros não são “educados a ponto de serem responsáveis”, que Trump posou em sua campanha presidencial. “Ele representava força, representava o oposto do que vemos hoje em dia”, afirmou o então candidato.

Para Hollywood, antagonista do republicano, John Wayne é um herói que comeu poeira.  

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.