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Prêmio Nobel celebra literatura pós-colonial de Abdulrazak Gurnah

Romancista nascido na Tanzânia constrói relatos brutais que discutem a migração e a política sem medo de chocar

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Este foi um ano em que a imprevisibilidade usual do Nobel de Literatura pareceu ainda mais acentuada, embora desse para fazer algumas suposições. Apesar de a escolha da poeta americana Louise Glück no ano passado ter feito muita gente acreditar que autores de língua inglesa estivessem fora do páreo, as linhas gerais dos palpites se provaram mais ou menos corretas.

O premiado não vem, como a maioria dos escolhidos nos últimos anos, da Europa ou da América do Norte. Ele tampouco é poeta como Glück.

Nascido em 1948 na Tanzânia, Abdulrazak Gurnah é conhecido por romances e coletâneas de contos. Ele não figurava nas listas de possíveis ganhadores, mais indigestas a cada ano —sempre iguais, como uma comida rançosa mil vezes requentada.

O escritor Abdulrazak Gurnah, da Tanzânia, que ganhou o Nobel de Literatura de 2021
O escritor Abdulrazak Gurnah, da Tanzânia, que ganhou o Nobel de Literatura de 2021 - Henry Nicholls/Reuters

No Brasil, Gurnah nuncafoi publicado —até agora. Seu romance de estreia, “Memory of Departure”, de 1987, toca em muitos temas que se desenvolverão na obra posterior.

É, de modo geral, um romance de amadurecimento. O narrador Hassan Omar acaba de completar 15 anos quando o livro tem início, o que, de acordo com aquilo que ensinam a ele, significa que agora é um homem. Desse ponto em diante, Hassan passa a prestar contas de seus atos.

Ao rezar na mesquita, ele insinua que cruzar o limiar da maturidade é como abrir uma conta em um comércio — seus débitos começam a ser computados. Mas as partes engraçadas são raras. Gurnah não tem medo de chocar, embora não escreva para chocar.

Estamos no Congo marcado pelo colonialismo da década de 1960. O ambiente brutal em que Hassan está inserido se delineia desde o início —embora esteja restrito à cidade de Kenge e ao próprio lar. Naquele lugar, a infância é só um estado transitório, em que o mais importante é aprender a desviar de todos os tipos de abuso, do espancamento ao estupro.

A masculinidade exige reafirmações constantes. Há um modelo de “como os homens devem ser”, nas palavras de Hassan, e que envolve sobretudo demonstrações de agressividade. Ou isso ou os meninos e homens se tornam vulneráveis a todo tipo de violência, sobretudo sexual.

Hassan é instado a se comportar e a tolerar, em suma, “as surras e as humilhações e o terror daqueles dias”. A mãe não o ensina a detestar o pai alcoólatra e violento, embora Hassan acredite que estaria mais bem equipado com o ódio.

Aparece, contudo, uma chance de ele deixar aquele lugar — cair nas graças do irmão da mãe, que deve certo dinheiro à família. Depois de uma luta para conseguir um passaporte, Hassan abandona a sua cidade natal para a capital do Quênia, Nairóbi. Na casa de um tio rico e esnobe, Hassan é tratado com o desprezo destinado ao primo pobre, o caipira de sapatos baratos e furados que não sabe quem é Pablo Picasso.

Não é lá, também, que se encontra a redenção do narrador, embora muito do seu amadurecimento possa vir daquilo que é forçado a confrontar. O que se destaca nesse trabalho precoce de Gurnah é a habilidade de criar uma atmosfera sufocante e opressiva, mais chamativa, pelo menos nesse estágio, do que os diálogos que giram em torno da situação política da região.

A sujeira da casa, para a qual, antes de partir, Hassan não consegue mais olhar, espelha os próprios horrores dos quais os membros da família desviam a vista —e só assim conseguem sobreviver.

Embora os livros de Gurnah passeiem por vários cenários, seus personagens sempre enfrentam as consequências de uma brutalidade cuja causa ora é conhecida e nomeada nos livros de história, ora se mostra mais difusa, como a de Hassan, que é dependente de uma rede de relações familiares intricadas e de sutilezas na própria construção psicológica desses sujeitos.

Não é algo nem um pouco fácil de fazer em um romance tradicional, por mais que pareça simples quando o procedimento acaba dando certo.

É preciso conferir a devida profundidade tanto aos personagens quanto às relações entre eles e a um contexto mais amplo —o que no caso deGurnah, que escreveu vários livros ambientados numa Tanzânia que fazia sua transição do colonialismo para a independência, é extremamente complexo— e fazer com que esses três elementos se sobreponham e funcionem em relativa harmonia no fluxo temporal da narrativa.

Gurnah não apenas faz isso como tem o dom, raro, de permitir que os componentes e as representações se impliquem e se atravessem, se espelhem e se interconectem.

É um Nobel para celebrar —e celebrar também o fato de que um escritor inédito certamente vai passar a ser publicado no Brasil.

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