Morre Glaucia Amaral, criadora do Sesc Pompeia ao lado de Lina Bo Bardi

Artista têxtil foi uma das formuladoras do projeto e realizou exposições marcantes sobre modernismo brasileiro

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Rio de Janeiro

Uma das formuladoras do projeto do Sesc Pompeia, a curadora e artista têxtil Glaucia Amaral morreu de causas naturais na madrugada desta quinta-feira (4), em São Paulo, aos 84 anos. Ela enfrentava a doença de Parkinson. O velório e o enterro vão acontecer no Cemitério do Araçá.

Em sua trajetória, a curadora realizou exposições marcantes sobre a arte popular, os brinquedos infantis, a moda e o modernismo brasileiro, nas décadas de 1980 e 1990. A discrição marcou sua relação com a arquiteta Lina Bo Bardi no projeto do Sesc Pompeia, em São Paulo.

Amaral colaborou com Lina nas exposições "Design no Brasil – História e Realidade" e "Mil Brinquedos para a Criança Brasileira", de 1982, e "Caipiras Capiaus: Pau a Pique", de 1984.

Mulher branca de cabelos grisalhos ao lado de manequim que usa um colete vermelho
A curadora e artista têxtil Glaucia Amaral - Reprodução

"Destaco o grande vínculo que ela tinha com a arte popular. Ela teve essa atenção muito especial e introduziu no Sesc esse cuidado, não do ponto de vista de mercado, mas de incorporar no dia a dia a arte popular brasileira. O Sesc tem um grande vínculo com a arte popular graças à Glaucia. É uma perda realmente extraordinária", afirma Danilo Miranda, diretor-regional do Sesc-SP.

Miranda acrescenta: "A decisão de aproveitar a antiga fábrica do Sesc Pompeia, a decisão de assumir a ideia do restauro da fábrica em grande parte tem o dedo e a atuação de Glacia. Já havia um projeto que demoliria totalmente a fábrica e construiria um prédio enorme".

O arquiteto e ensaísta Francesco Perrotta-Bosch, autor de "Lina: Uma Biografia", da Todavia, reconhece o papel de Amaral no projeto. "O Sesc Pompeia não existiria tal como o conhecemos se não fosse por Glaucia Mercês do Amaral. Ela e Renato Requixa foram as duas figuras na diretoria do Sesc, nos anos 1970, que mudaram o rumo da história", conta Perrotta-Bosch.

"Eles invalidaram os planos para demolição da velha fábrica. Foram pioneiros na defesa da requalificação de uma estrutura industrial obsoleta e sua conversão em centro de lazer. Veio de Gláucia a ideia de convidar a Lina Bo Bardi para fazer o projeto arquitetônico."

Sozinha, Glaucia Amaral fez as curadorias de "Artesanato Mexicano", de 1971, no Sesc Consolação, "Os Modos da Moda", de 1992, no Sesc/Senac, "Labirinto da Moda: Uma Aventura Infantil", de 1995, e "Flávio Império em Cena, de 1997, —estas últimas no Pompeia.

Fora da instituição, curou as exposições "Cantos Populares do Brasil: A Missão de Mário de Andrade", de 2001 a 2004, no Centro Cultural São Paulo, e "Camargo Guarnieri Trajetória de um Compositor", de 2005, na Sala São Paulo.

Em 1998, a convite de Paulo Herkenhoff, curador da 24ª edição da Bienal Antropofágica de São Paulo, Amaral organizou a exposição paralela "O Balé do IV Centenário", no Sesc Belenzinho. Herkenhoff lembra de sua acolhida à ideia de uma abordagem do vestuário brasileiro a partir do modernista Flávio de Carvalho.

"Foi uma pessoa que me marcou muito porque ela tinha algumas qualidades importantes para um curador: cultura, entusiasmo e dedicação", diz Herkenhoff.

"Era uma época em que a questão têxtil da história da moda, do vestuário, não tinha grandes curadores e ela se demonstrou uma exceção. Ela sacou o potencial do Balé do IV Centenário pra trazer uma discussão limpa."

Como artista têxtil, Glaucia Amaral fez a individual "Roupas Bordadas", no Masp, em 1986, e integrou a coletiva "Traje: Um Objeto de Arte?", de 1990, no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbekian, em Lisboa.

Em 1997, na Galeria Cândido Mendes, no Rio, ela apresentou seus trabalhos na mostra "A Vitória do Príncipe Roldão no Reino do Pensamento: a História de Um Vestido Rendado".

Num texto manuscrito, encontrado em seu arquivo, ela sintetiza sua relação com o vestuário. "A escolha do traje para mim sempre foi um meio de expressão individual, nas cores, nas formas, nos adornos, traduzindo nossas alegrias e tristezas, nossas fantasias, nossas vontades. Construir uma roupa como um objeto único, rico em significados, de elaboração lenta e artesanal e para uso atemporal foi a maneira que encontrei para me expressar e mostrar como as civilizações primitivas e a natureza me fascinam", escreveu a artista.

A gestora cultural especializada em música, Cláudia Toni, define as exposições de Amaral como antropocenográficas. "Ela estava bem à frente de seu tempo. Parte da resistência em torno dela se devia ao fato dela pensar tudo pra frente. Ela entendia o Brasil de um jeito que o Brasil só está se entendendo hoje. Claro, uma parte do Brasil. Ela valorizava a cultura popular, o que os índigenas e negros produziram, conciliava a cultura erudita com a cultura popular. Era uma coisa muito inovadora. As pessoas consideravam uma atividade menor", diz Toni.

A amiga reconhece a "fúria" como um traço definidor de sua personalidade criadora. "Isso muitas vezes se voltou contra ela. Mas foi a fúria que permitiu que uma mulher solteira, muito tímida, construísse tanta coisa num meio muito masculino e muito tradicional. Era uma mulher que pensava as artes visuais de um ponto de vista completamente heterodoxo."

Em seu pequeno duplex, no bairro do Itaim-Bibi, o olhar de curadora impregnava todas as paredes, em geral decoradas com obras de arte popular brasileira ou internacional reunidas em suas viagens. No alto do ateliê, onde guardava seus bordados, havia um enorme morcego feito por um funcionário do Sesc. Orgulhava-se de travar boas pelejas com o mundo oficial da cultura. "Gosto de briga. Brigar é tão bom, queridinho", sorria Glaucia Amaral.

Nos últimos anos, ela se queixava dos desvios de temperamento de Lina Bardi e da ausência de reconhecimento ao seu trabalho. "Lina era maravilhosa, mas era também mau caráter. Passou a puxar pra autoria dela tudo o que fazíamos em colaboração. Nunca me deu o devido reconhecimento. Lina não queria fazer o espaço das oficinas no Pompeia, eu a obriguei a pôr no projeto. Depois, ela passou a dizer que foi ideia dela."

Ela relembrava em detalhes sua aproximação com a arquiteta italiana. "Eu tinha visitado o Museu de Arte Moderna da Bahia e achei o máximo o projeto de Lina no Solar do Unhão, preservando os trilhos da antiga fábrica. Era o que eu queria para o Pompeia. Queria que ficasse a memória daquele lugar. Procurei então Pietro Maria Bardi, no Masp, pra transmitir o convite. Lina estava esquecida, ninguém lembrava mais, eu não tinha sequer o contato dela", disse a este repórter.

"Ao transmitir meu recado a Lina, Bardi mentiu. Disse que ele tinha recomendado o nome dela ao Sesc. Bardi não prestava. Lina ficou surpresa quando eu contei a verdade. Ele ficava enciumado com o trabalho de Lina no Sesc. Na exposição da ‘Caipiras Capiaus’, Lina me pediu pra convidá-lo, senão ele não iria. Competia e ficou irritado, arremessou o catálogo em casa."

Prestes a morrer, Glaucia Amaral pretendia fazer uma exposição em homenagem ao diretor-curador do Museu Afro Brasil, Emanoel Araujo, com quem se identificava na valorização da cultura popular.

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