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Lina Bo Bardi tem sua arquitetura contraditória destrinchada em biografias

Livros se debruçam sobre a vida e obra da responsável pelo Masp, que alcançou aclamação póstuma em Veneza

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Lina Bo Bardi em meio a cadeiras de madeira

A arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi no teatro do Sesc Pompeia Bob Wolfenson/Divulgação

São Paulo

Nas reportagens publicadas sobre a inauguração do Museu de Arte de São Paulo, em 1947, quando ele ainda ocupava um edifício na rua Sete de Abril, Lina Bo Bardi não foi mencionada nenhuma vez.

A arquiteta era responsável pelo projeto do museu que mudaria para sempre a posição de São Paulo no circuito mundial das artes. Mas não houve nenhum registro disso. O louvor se concentrou em seu marido e parceiro profissional, o respeitado crítico de arte Pietro Maria Bardi.

Passados 75 anos, a mulher então ignorada recebeu um Leão de Ouro póstumo, a maior homenagem da Bienal de Arquitetura de Veneza, e tem agora sua história contada em duas biografias de peso, que procuram destrinchar uma carreira marcada pela ousadia e pela contradição.

Ainda que Lina procurasse imprimir uma coerência voluntariosa à narrativa de sua vida, seu trabalho articulava referências vindas de todo canto e sua personalidade borbulhava um caldeirão de opiniões inclassificáveis e sentimentos conflituosos.

“Havia ambivalência entre uma obra humanizada, tátil, com muito apego, e uma personagem com grande dificuldade em todos esses aspectos. Uma pessoa irascível, melancólica”, afirma Zeuler Lima, autor de “Lina Bo Bardi: O que Eu Queria Era Ter História”.

“Ela era concomitantemente afetuosa e dura”, diz o crítico Francesco Perrotta-Bosch, que está lançando “Lina: Uma Biografia”. “E alguns projetos, como o Sesc Pompeia, mostram esse seu afeto e dureza.”

Dureza em sentido duplo —pelo nível de exigência que fazia ecoar o alerta “cuidado com a dona Lina” no canteiro de obras da rua Clélia; e pelas cadeiras sem estofado do teatro, cujo desconforto lombar se justificava pela proposta cênica de “distanciar e envolver”.

Curioso que a arquiteta que desenhou uma cadeira espartana para impor altivez aos espectadores seja a mesma que, respondendo a críticas sobre o projeto do Masp —já o da avenida Paulista—, disse que quis mesmo realizar uma obra feia, mas que fosse “um espaço aproveitável” pelas pessoas, com espaços livres “criados pela coletividade”.

“Lina tem essa capacidade dupla, de ser generosa para pensar que um ambiente é uma autoria coletiva entre as pessoas que entram nele, mas ao mesmo tempo querer também participar dessa autoria”, afirma Perrotta-Bosch.

Sua biografia foge da linearidade temporal que costuma caracterizar livros do tipo. Afinado à filosofia da arquiteta —que usava um conceito de “presente histórico” para guiar suas restaurações—, o autor aproxima épocas distintas para explicar melhor tudo aquilo que transformou Achillina Bo em Lina Bo Bardi.

“Tem o período da Bahia, por exemplo, que muitos autores mitificam como uma espécie de milagre, um momento de expansão da Lina”, diz o autor, em referência ao trabalho da arquiteta no Solar do Unhão, na virada dos anos 1950 para os 1960, que valorizava a arte popular da região.

“Por ter estudado a sua vivência durante a Segunda Guerra na Itália, eu pensava que ela só poderia ter chegado ao pré-artesanato nordestino porque tiveram bombas na cabeça dela em Milão. Porque ela teve aquela experiência não da pobreza, mas do desastre num sentido amplo, para criar uma empatia com aquelas pessoas e objetos.”

A proposta do livro, conforme compara o biógrafo, é apresentar essa variedade de Linas da mesma forma que a alguém que entra numa galeria do Masp e se depara com seus famosos cavaletes, que permitem observar diversos movimentos históricos dentro de uma mesma mirada.

Mas as ambivalências da arquiteta ultrapassam o aspecto profissional. Lina tinha uma blague recorrente, para provocar amigos e entrevistadores, em que se dizia “antifeminista, militarista e stalinista”.

O vitupério às mulheres se explica por algumas hipóteses, como sua ideia de que o movimento feminista era algo de classe média burguesa e sua busca por se distanciar de um gênero contra o qual se avolumavam preconceitos associados a fragilidade, quando Lina engendrava uma persona impositiva em espaços dominados por homens.

Ao mesmo tempo —note a contradição— ela tinha o hábito de frisar, sempre que alguém se admirava com
suas criações. “Sabe quem fez isso? Foi uma mulher!”

Segundo Zeuler Lima, a arquiteta “se deu a liberdade de entrar e sair das definições tradicionais de gênero”. A biografia do autor, que é professor da Universidade de Washington em Saint Louis, se descola com frequência da figura de Lina para descrever o panorama dos movimentos arquitetônicos que a circundavam, o que o põe numa boa posição para ensaiar explicações sobre sua revalorização recente.

O reconhecimento de Lina em vida, apesar de ter crescido em relação ao episódio que abre esta reportagem, continuou limitado. A intelectualidade acadêmica brasileira torcia o nariz para as ingerências arquitetônicas de uma mulher, estrangeira ainda por cima —não importava que ela amasse o país a ponto de ter renunciado à nacionalidade italiana.

A repercussão de sua obra se ampliou após a morte, em 1992, não só pela ampla divulgação do Instituto Bardi e de seus pupilos, mas por um ambiente internacional propício.

“Existe o contexto importante da crise econômica de 2008”, aponta Lima. “Até então existia o que chamávamos de um star system da arquitetura, grandes arquitetos de nome global, geralmente europeus, americanos e japoneses, que eclipsavam toda forma de trabalho que fosse humanística, que não servisse ao grande capital financeiro.”

“Quando este entrou em colapso, outros arquitetos passaram a ter mais voz”, acrescenta. “Nesse vácuo, as pessoas saíram à procura de novas referências, que pudessem trazer uma nova crença na arquitetura. Os anos do star system foram de um cinismo profundo, de negar questões sociais e de gênero. Quando eles vão a segundo plano, Lina emerge.”

A única vez em que o biógrafo viu a arquiteta em pessoa, vale contar, foi numa mítica palestra que ela deu quase no fim da vida, em 1989, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo —instituição pela qual se sentia rejeitada desde que, décadas atrás, não a acolheram como professora.

Ao término de uma longa interação com alunos que pouco haviam aprendido sobre ela em aula, uma ovação irrompeu. Lina ficou sentada, com os braços cruzados sobre a mesa cheia de papéis e o rosto virado para baixo. Segundo Zeuler Lima, ela apertou os braços contra o peito “como se procurasse se proteger” e fixou os olhos, “impassível e solitária, na direção do vazio de suas anotações”.

A descrição de Perrotta-Bosch para a mesma cena é diferente, com um toque a mais de catarse. “Inclinando o rosto num nipônico gesto de agradecimento, Lina fechou os olhos e escutou as palmas.”
São leituras quase contraditórias. O que Lina pensou, de verdade, naquela hora de aclamação? Quem sabe.

Lina: Uma Biografia

  • Quando Lançamento em 7/5
  • Preço R$ 89,90 (576 págs.); R$ 34,90 (ebook)
  • Autoria Francesco Perrotta-Bosch
  • Editora Todavia

Lina Bo Bardi - O que Eu Queria Era Ter História

  • Quando Lançamento em 7/5
  • Preço R$ 89,90 (456 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Zeuler R. Lima
  • Editora Companhia das Letras
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