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Cinema

'Cidadão Kane', 80, cativou Borges ao não chegar a resposta alguma

Orson Welles nos afunda no labirinto de um homem, mas ninguém sabe o que é um homem

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Chegando aos 80 anos, "Cidadão Kane" continua a ser considerado um dos melhores filmes de todos os tempos. Não foi bem assim que as coisas se passaram de início.

Depois de chegar a Hollywood com toda a pompa e direitos absolutos sobre seu trabalho, Orson Welles teve de enfrentar o magnata da imprensa William Randolph Hearst retratado, ao menos em parte, em seu filme.

Não era um adversário pequeno. "Kane" foi mal de bilheteria, foi vaiado durante a cerimônia do Oscar de 1941 e, de todos os nove prêmios a que concorreu, só levou o de roteiro original. Sua redescoberta se deu na Europa, onde o uso contínuo da profundidade de campo –ou seja, o foco em todo o plano–, dos longos planos-sequência, das posições de câmera ousadas valeram a ele a reputação de filme radicalmente renovador da linguagem cinematográfica.

Mas isso aconteceu só depois que a Segunda Guerra Mundial acabou. Até então, os filmes americanos não chegavam às regiões ocupadas ou cúmplices da Alemanha nazista, ou quase todo o continente, em suma.

Antes disso, "Kane" chamou a atenção de Jorge Luis Borges. O grande escritor argentino até apontou alguns senões, mas não se enganou quanto ao principal –a formidável inovação narrativa que o filme trazia.

Sua trama, como sabemos, gira em torno de descobrir quem realmente foi Kane, o poderoso magnata da imprensa –bilionário, excêntrico, ambicioso, "bon vivant" e muitas coisas mais. Borges conclui que saímos do filme sem saber quem era Kane.

E essa a grande transformação que Welles oferecia à narrativa cinematográfica. Em lugar de uma história que propõe um problema e chega, necessariamente, à sua resolução —exemplo seria um gângster toma uma cidade; é preciso eliminar o criminoso de algum modo; quando isso acontece, a intriga está acabada—, "Kane" chegava a um impasse. À questão "quem foi Kane" a resposta era que não sabemos.

Em outras palavras, Borges diz que Welles nos afunda no labirinto de um homem e que ninguém sabe o que é um homem, pois será sempre muitos.

Pode ser, mas "Otelo", de 1951, trata de poucos problemas —a paixão, o ciúme, a traição. Desdêmona abandona a família para casar com o mouro Otelo, mas tempos depois o ressentido Iago o convence de que Desdêmona o trai com outro homem. Não são pequenos problemas, em todo caso.

Welles já estava longe de ser o poderoso Welles que chegou a Hollywood. Já tinha de trabalhar como ator para financiar seus filmes. Por falta de dinheiro, teve de interromper a produção três vezes; as filmagens se estenderam por três anos.

Só diretores de fotografia o filme teve cinco. E, no entanto, basta ver as primeiras cenas —que parecem inspiradas no Eisenstein de "Que Viva México!"— para perceber que se trata de um cineasta invulgar.

Adaptar Shakespeare não deve ser difícil, até Kenneth Branagh fez um bom filme a partir de "Henrique 5º". Apesar das irregularidades, aqui se sente o diretor invulgar tanto na beleza dos exteriores como na tensão que imprime aos diálogos que compõem a intriga.

E, como o Belas Artes à la Carte vive dias iluminados, seu assinante os aproveitará ainda melhor se assistir, também, à obra-prima "A Morte num Beijo", de 1955, de Robert Aldrich, um dos melhores e mais radicais filmes noir jamais feitos.

Ali, tudo gira em torno de uma caixa que muitos ambicionam. O que contém? Eis a questão. Talvez seja este o melhor "macguffin" –para usar a linguagem hitchcockiana– da história. Quem viver verá. Mas sobreviver ao conteúdo dessa caixa não será tão fácil para nenhum personagem.

Cada um desses três filmes é também a afirmação da força das imagens em branco e preto.

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