Numa espécie de ringue de luta, com colunas em forma de grades de ferro iluminadas de vermelho, a plateia fica ao redor de um quadrado delimitado com fitas, que serve de palco para os atores. De repente, o sino indicando o início de um round toca e ao fundo narradores, em inglês, falam da expectativa da disputa que está prestes a começar.
Esse é o ambiente onde é encenada a peça "Cock", do autor britânico Mike Bartlett, considerado um dos maiores da atualidade. Ela rendeu ao dramaturgo o prêmio Olivier, em 2010, na categoria "outstanding achievement" —algo como "conquista incrível"— a maior honraria do teatro britânico.
No Brasil, a montagem foi idealizada por Andrea Dupré e Daniel Tavares, que também fazem parte do elenco, e é dirigida por Nelson Baskerville. A temporada de estreia está em cartaz na Oficina Cultural Oswald de Andrade, no Bom Retiro, em São Paulo.
Essa é mais uma peça de Bartlett que sobe aos palcos no país, como "Love, Love, Love", do grupo de Débora Falabella, em 2018. "Medea", versão do britânico do clássico de Eurípedes, ganhou montagem da Cia. do Sopro, dirigida por Zé Henrique de Paula, em cartaz no Sesc Pompeia até o final de novembro.
Outro texto que chega ao Brasil é "Terremotos", com estreia marcada para o ano que vem, no Sesi. O elenco conta com Paloma Bernardi, Carol Duarte e Virginia Cavendish e a direção é de Marco Antônio Pâmio, que também atua em "Cock".
Ele interpreta o ex-namorado de John, personagem de Daniel Tavares que se vê em um conflito para definir sua identidade e sexualidade depois de se paixonar por uma mulher, interpretada por Andrea Dupré, logo após ter dado um tempo com seu companheiro.
Num jantar turbulento com os três mais o sogro de John, interpretado por Hugo Coelho, as farpas rolam soltas e o personagem é forçado a dar uma resposta. Para além da bissexualidade, a peça de Bartlett fala sobre a pressão social para saber quem o protagonista realmente é, sentimento que o paralisa.
O nome "Cock", em inglês, tem múltiplos significados. Pode ser usado para pênis, para uma pessoa com personalidade arrogante ou para galo. O dramaturgo consegue juntar todos esses sentidos, com embates entre os personagens.
Segundo o diretor, Mike Bartlett consegue ser dialético em seu texto, contribuição trazida por Brecht para o teatro e comumente associada ao teatro épico.
"A peça cumpre a função de uma obra de arte, que é fazer você refletir, repensar e de forma totalmente lúdica", afirma ele. O espetáculo mostra que os sentimentos, desejos e afetos não são rotuláveis.
No desenrolar da trama já não se sabe mais quem é o opressor e quem é o oprimido, são todos ao mesmo tempo. Segundo o diretor, é isso que Bartlett faz com maestria, plantar esses questionamentos na plateia, pondo conflitos da sociedade de uma forma pouco convencional.
A plateia fica observando, de certa forma inquieta, sentindo junto com John a pressão para ele decidir o que ele é. Reclamações frustradas podem ser ouvidas em um canto ou outro da arquibancada. "E no final você não está torcendo por ninguém. O errado realmente é a sociedade que impõe todo o tempo para a gente ser alguma coisa, cumprir um papel social, uma profissão", diz Baskerville.
A disposição do público e a falta de elementos é uma sugestão do próprio autor, e isso fez com que Nelson Baskerville voltasse para o teatro de arena, com o qual trabalhou durante muito tempo antes de enveredar para o expressionista, que se apoia muito na cenografia.
Com a retomada de espetáculos presenciais após quase dois anos, relacionada a uma melhor cobertura vacinal contra e Covid-19 no estado, o diretor diz encontrar um público ávido pela experiência teatral. "Nós ficamos praticamente dois anos consumindo televisão e cinema dentro de casa", afirma. "O fenômeno teatral é totalmente diferente de qualquer coisa."
Mas, segundo ele, não é só a pandemia que ameaça a arte, e sim o governo Bolsonaro e a gestão da Secretaria Especial da Cultura por Mario Frias. "O que a gente mostrou agora é uma resistência", diz, com sua visão otimista. "Nada vai nos derrubar. Nós somos uma força trabalhadora e uma força pensadora".
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