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'A República das Milícias' impressiona com relatos da violência no Rio

Podcast de Bruno Paes Manso investiga o poder do crime sem deixar de abordar os problemas sociais mais agudos do país

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A República das Milícias

Em dado momento, o entrevistado diz ao jornalista que o Rio de Janeiro é a capital e a referência da inteligência criminosa no Brasil, ao que este completa "das inovações culturais em geral, né?".

Essa é uma das passagens que melhor exemplifica a abordagem de "A República das Milícias", o podcast do jornalista e pesquisador Bruno Paes Manso, interessado na elucidação do sistema criminal e em suas raízes, que brotam de uma cultura a um só tempo passional e violenta.

A série documental em áudio, uma produção original do Globoplay com a Rádio Novelo, é uma adaptação do livro homônimo do autor publicado pela Todavia em 2020 e tem o objetivo de explicar o que faz da maioria dos moradores do Rio vítimas de uma guerra particular.

Dois militares seguram fuzis diante de favela no Rio
Membros do Exército na favela Rio das Pedras, na zona oeste do Rio de Janeiro, em 2008 - Rafael Andrade/Folhapress

Na ocasião, o entrevistado Reginaldo Lima afirma que desempenha a função de mediador numa espécie de "guerra dos tronos", ou "Game of Thrones", carioca, em que o território do Rio de Janeiro é constantemente disputado entre facções do tráfico e da milícia associadas ao jogo do bicho.

Porém, se "guerra dos tronos" é uma boa metáfora para definir o conflito criminal da cidade, é bom estar ciente de que, das violências descritas pelos entrevistados, nada é linguagem figurada. Os relatos de tortura, execução ou punição contra quem atravessa o caminho da contravenção impressionam.

Ao longo de oito episódios, Bruno Paes Manso faz um retrato que nega respostas simples. Quando parece estar completo o glossário do crime carioca —que nos ensina termos como arrego, polícia mineira e embuchar—, logo surge uma nova cena brutal que confunde ainda mais o que parecia estabelecido.

Em vez de uma aula sobre a bandidagem do Rio de Janeiro, "A República das Milícias" é uma investigação a respeito do poder da violência e do dinheiro no Brasil, sem deixar de articular alguns dos problemas sociais mais agudos do país como machismo, racismo, autoritarismo, corrupção e desigualdade econômica.

Diante da tarefa complexa, o autor faz um longo percurso, que começa na segunda metade do século 20. São detalhados os primórdios da milícia a partir de paramilitares que, com o respaldo da imprensa, "faziam justiça com as próprias mãos", no que ficou conhecido como grupos de extermínio, a exemplo do Esquadrão da Morte e da Invernada de Olaria, que tinham o apoio da ditadura militar.

Com o crescimento do tráfico de drogas nos morros após os anos 1970, aumenta o anseio por antagonistas "do bem", isto é, aqueles que protegeriam as comunidades da influência dos traficantes, que viriam a formar facções como o Comando Vermelho.

Assim se constituíram as milícias de Rio das Pedras e da Liga da Justiça, no bairro de Campo Grande e Santa Cruz. Os grupos, dos quais participavam policiais civis e militares, não demoraram a virar mais uma facção que lucra com serviços que o Estado não fornece às regiões periféricas, como segurança, gás, televisão e internet.

A principal diferença da milícia em relação ao tráfico passou a ser seu apoio por parte considerável da opinião pública, o que seria fácil tachar de ignorante. Mas Paes Manso faz um verdadeiro mergulho na história de seus personagens, cujas vidas, marcadas pela banalidade da violência, se tornam mais compreensíveis.

Vale destacar o personagem Lobo, que aparece na maioria dos episódios como um fio condutor da narrativa. Com um nome fictício e a voz alterada para proteger sua identidade, Lobo é um dos trunfos da série.

Ex-miliciano que ostenta no peito três caveiras tatuadas, cada uma representando uma vítima de assassinato sua, o personagem tem um carisma desconcertante, seja ao relembrar a infância saudosa num município da Baixada Fluminense —comandado por um justiceiro miliciano—, seja ao falar dos tempos em que coletava a taxa de segurança dos moradores da comunidade onde atuava, em Jacarepaguá, e tinha acesso irrestrito às armas do 18º Batalhão da PM.

Mais do que informações, Lobo oferece a dimensão profunda de como é nascer e crescer num mundo alheio à ordem oficial do Estado, no qual honra e valentia equivalem à força bruta.

Mesmo quando sofreram um golpe nos anos 2000 —com a instalação da CPI das Milícias, requerida pelo então deputado estadual Marcelo Freixo e que deixou um saldo de centenas de presos—, os grupos milicianos logo se reestruturaram. Como um câncer em metástase, eles evoluíram para um formato mais impessoal, representado por policiais corruptos saídos do Bope com conexões políticas e um vasto leque de negócios, como a venda de territórios irregulares e acordos com o tráfico de drogas e o jogo do bicho.

Esses são os casos de Adriano da Nóbrega, um dos matadores mais temidos do Rio que recebeu condecorações da família Bolsonaro, e de Ronnie Lessa, miliciano acusado de ser o autor do assassinato de Marielle Franco, que ainda não foi esclarecido por completo.

A morte da vereadora em 2018, suas razões e implicações para a criminalidade no Rio são objeto de análise do autor e levam o programa, paradoxalmente, ao seu momento mais arejado —talvez por concluir que as lutas de Marielle Franco não foram caladas após sua morte. Ao contrário, sua voz continua a ecoar na pergunta "quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?".

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