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Cinema

'Belle' leva o idealismo de 'A Bela e a Fera' para a época do metaverso

Ainda que parta de traumas pessoais, animação de Mamoru Hosoda, indicado ao Oscar por 'Mirai', é encantadora

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Belle

  • Quando Estreia nesta quinta (27)
  • Onde Nos cinemas
  • Classificação 14 anos
  • Elenco Kaho Nakamura, Ryô Narita, Shôta Sometani
  • Direção Mamoru Hosoda

"Belle" representa bem o tipo de sentimentalismo que o cinema e o quadrinho japonês encontra quando quer tratar da população jovem e desajustada —cercada por pressões, traumas, pensamentos fixos, para quem os adultos não são mais que obstáculos e a família é distante e incomunicável.

Nesse longa de Mamoru Hosoda —indicado ao Oscar de melhor animação por "Mirai", em 2019—, Suzu traz quase todos esses itens. É uma adolescente depressiva, que perdeu todo o gosto pela vida depois que a mãe decidiu se lançar ao rio turbulento para salvar uma menina, e o heroísmo virou sinônimo de suicídio.

Em especial, repreendeu sua paixão pela música, que compartilhava com a mãe. Já se passaram anos, mas ela segue se recusando a jantar com o pai, e até vomita só de tentar cantar, mesmo a sós. Mas esse é o mundo real, punk, de cores sóbrias e poucas expressões.

É bem diferente daquele mundo com o qual "Belle" nos apresenta logo no primeiro minuto –uma linda mulher, alta, de vestido e com longos cabelos cor-de-rosa. Ela canta a plenos pulmões em cima de uma enorme baleia azul voadora, com alto-falantes cravejados nas costas, flores e toda sorte de enfeites enquanto encanta todos os habitantes do chamado U —o mundo em que todos podem recomeçar.

É nesse universo virtual —que se assemelha a uma gigantesca placa de circuitos— que se desenrola o verdadeiro conto de fadas que nenhum filme da Disney seria capaz de assumir, senão pela sutileza.

Se em "Encanto" vimos o estúdio americano tentando dissipar a ideia de que o núcleo familiar é nosso porto seguro, assim como "Frozen 2" era especialmente enfático em relação à morte e aos grilhões do passado, "Belle" resgata "A Bela e a Fera" e o traduz para a era do metaverso.

Isso porque, enquanto faz sucesso com seu brilho solar, Suzu é confrontada por um avatar chamado Fera, ou o Dragão, um verdadeiro lobo mau temido por todos, movido pela raiva, corcunda, com chifres e boca enormes, bem como uma longa capa repleta de manchas que sugerem hematomas.

Não é preciso dizer que a boa alma vai tentar se aproximar do dito vilão —perseguido por justiceiros à moda Power Rangers— e encontrará sua boa alma e até uma plantação de rosas num distante castelo. Como é um filme japonês, naturalmente, não teremos candelabros ou relógios falantes, mas diversas serviçais no formato de insetos com cabeças de garotinhas. O design desses personagens fantasiosos, aliás, é um show à parte.

Vários elementos remetem ao conto francês do século 18, mas as diferenças são marcantes. "Belle" retrata uma era sem príncipes encantados ou eternos namorados. Até há um pouco de romance no mundo real entre Suzu e um colega de infância que jurou proteger a protagonista (o que ela entende como um pedido de casamento). Mas o único "eu amo você" que aparece no filme é de inocência, e não de desejo.

O fato é que, se a Bela da Disney estava cara a cara com o monstro, na realidade virtual as distâncias são intransponíveis. Afinal, como salvar a Fera se ela não sabe quem é essa pessoa no mundo real? E como até provar que Belle é só uma menina comum do interior do Japão? Fica então a tarefa para Suzu e sua amiga hacker a tarefa de transitar entre esses dois mundos.

Mas as melhores sacadas narrativas não vêm desse esforço —Hosoda entende o mundo caótico da internet e infiltra a narrativa com um verdadeiro turbilhão de telas, lives, sites de notícias e balões de comentário. Nesse mundo de simulacros, as histórias mais reais são engolidas pelo excesso de informação, em que violência e entretenimento recebem os mesmos patrocinadores.

Apesar de as melhores gags surgirem dessas referências diretas ao mundo digital e suas peculiaridades —de camgirls às piadas com j-pop e com a cantora virtual Hatsune Miku até soluções visuais que remetem a videogames—, talvez o grande defeito de "Belle" seja deixar as regras desse mundo um tanto dispersas. Isso e a previsibilidade do enredo, que pode ser intuído todo logo na primeira meia hora de filme.

Claro, fazer uma coisa estupidamente cerebral só provocaria mais "furos de roteiro". Mas não deixamos de nos perguntar que consequências certas ações deveriam ter no mundo real ou como raios certos ambientes são construídos ou destruídos na realidade virtual.

Não deixa, ao mesmo tempo, de ser uma provocação para notarmos que, por mais coisas absurdas que vemos ou falemos na internet, muitas vezes só estamos impassíveis digitando furiosamente em frente a uma tela.

E talvez, nesse mundo sem lei, só entendamos a consequência na pele. É o que sugere Hosoda, pelo menos, quando o bom senso vem ao primeiro plano, peitar o absurdo e mostrar quem é a verdadeira fera —coisa que Mark Zuckerberg nunca entendeu muito bem.

"Belle" é ainda um conto de fadas, com final feliz. Mas tem tantos elementos lúdicos e sombrios, coloridos e melodramáticos, cruéis e inocentes, que fica difícil Suzu —sino, em japonês— não ressoar nas testemunhas de sua ousadia. No Festival de Cannes do ano passado, pelo menos, foram 14 minutos de aplausos.​

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