Enquanto nadavam nos aquários onde estavam expostos, sete peixinhos iam driblando ondas sonoras de vozes recitando "Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust, tocando em alto-falantes submersos. Do lado de fora, um motociclista circulava pelas ruas do centro de São Paulo para gritar a palavra "tempo" num megafone.
Criada pelo artista Nuno Ramos, a performance "Perdido", que aconteceu entre o fim de janeiro e início deste mês, na Biblioteca Mário de Andrade, é mais um desses casos polêmicos em que bichos reais se transformam em obra de arte e atraem olhares curiosos, entusiastas e de reprovação.
O mesmo Nuno Ramos já fez isso antes. Em 2006, ele apresentou a instalação "Vai Vai", em que três jumentos carregavam caixas de som entre recipientes com água, feno e sal. Quatro anos depois, estampou manchetes com "Bandeira Branca", em que três urubus apareciam num viveiro, na 29ª edição da Bienal de São Paulo.
Segundo o artista, todas as vezes em que usou animais em suas obras foi uma maneira de dignificar os bichos, não de prejudicar. Mas, claro, há quem discorde.
Logo após a Biblioteca Mário de Andrade iniciar a divulgação de "Perdido" nas redes sociais, várias pessoas criticaram a dinâmica da performance e acusaram a instituição e o artista de se aproveitarem da vulnerabilidade dos peixes para uma tarefa desnecessária.
Diante das críticas, a biblioteca publicou uma nota em que afirmava que o bem-estar dos peixes era prioridade. "Todos os cuidados técnicos foram adotados para garantir a máxima qualidade de vida dos animais participantes. Aquaristas e biólogos foram consultados para que as condições criadas nos aquários fossem ideais", afirmava o comunicado.
Esse tipo de consulta a especialistas de animais é comum quando artistas usam bichos na arte, mas não é regra. Quando a pernambucana Juliana Notari fez a videoinstalação "Mimoso", por exemplo, não recorreu a especialistas. Exibido em 2019 no Sesc 24 de Maio, o trabalho mostra a artista sendo arrastada nua por um búfalo na ilha de Marajó, no Pará, e depois comendo o testículo cru do bicho com garfo e faca.
"A princípio, ia só filmar eu sendo arrastada pelo búfalo. Mas chegando lá, com a equipe de filmagem, descobrimos que ele seria castrado no dia seguinte. Fiquei com a informação na cabeça e decidi que levaria isso para dentro do meu trabalho", conta Notari, artista que, no ano passado, viralizou nas redes com a escultura de uma vulva gigante.
O búfalo foi castrado sem anestesia, porque, segundo a artista, era exatamente o jeito que seu dono havia planejado fazer. "Foi muito duro ouvir ele gritando, uma crueldade. Enquanto artista, eu estava ali ritualizando uma cena banal do cotidiano, que se faz a torto e a direito no nosso país. Incorporei toda a energia que seria jogada ao cosmos, para o ritual", ela diz.
As reações à videoinstalação, porém, foram tão negativas que a pernambucana gravou um vídeo explicando o que a teria levado a comer os testículos, e o conteúdo passou a ser exibido junto à obra.
Há 20 anos, Notari fez a instalação "Verstehen", em que 30 jabutis passeavam por terra, bolas de cabelo humano e projeções ao redor de uma galeria de arte recifense. Ao contrário de "Mimoso", ela precisou do aval do Ibama, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, mas não foi nada fácil.
"Na época, teve um biólogo que ficou extremamente bravo. Ele dificultava muito a situação. Foi necessária muita persistência para conseguir a autorização", diz ela. "Há muita hipocrisia quando você lida com animais no meio artístico. Não estou dizendo que a arte pode tudo. Existem, sim, limites a serem respeitados, e é para isso que serve a lei. Mas há muita hipocrisia. Eu não como carne há anos, ao contrário de muita gente que me criticou."
Hipocrisia ou não, o assunto costuma ser não só polêmico, como desperta muitas interpretações e debates. Segundo a especialista em artes visuais Maria do Carmo de Siqueira Nino, a discussão perde força, porém, quando inserida no campo virtual, com os limites das redes sociais.
Nino afirma que, como a arte é um campo de conhecimento, os valores atribuídos a determinadas obras são rodeados pelos contextos histórico e cultural vigente, o que aumenta a complexidade sobre o debate ético.
"Há séculos temos obras de arte desse tipo. Não é algo novo", diz ela. "Mas a chegada do século 20 foi muito pródiga em abrir uma gama de possibilidades de expressão artística."
A lista de obras com bichos inclui casos como "O Peixe", filme de Jonathas de Andrade com pescadores que dão um longo e demorado abraço em suas presas agonizantes, e "Comunhão", de Rodrigo Braga, em que há uma série de fotografias mostrando a cabeça do artista encostada na de um bode morto. O mesmo Braga aparece em outras obras duelando com um caranguejo e já pendurou peixes mortos em árvores.
E, mesmo quando há autorização do Ibama —o que determina uma série de protocolos—, obras com animais costumam incomodar muitos. Segundo a advogada Letícia Filpi, coordenadora do Grupo de Advogadas Animalistas Voluntárias, até mesmo o aval do órgão é ilegítimo e deveria ser repensado.
Segundo ela, usar animais em obras de arte é uma ação desprovida de empatia e compaixão. "Todo animal é um ser senciente, ou seja, tem sentimentos", diz ela. "Cada ser senciente deveria ter uma vida plenamente autônoma."
Ainda que criticado pelas obras com animais, Ramos afirma que acha importante a discussão sobre legitimidade dessa ação e vê nisso um processo natural da arte. "Não quero maltratar ninguém. Acho realmente importante discutir tudo isso", diz ele. "Nas minhas obras, estou, inclusive, dando ao animal justamente a possibilidade de verem sua potência simbólica."
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