Descrição de chapéu Folhajus

Iphan cancela tombamentos em série em ações vistas como ilegais e acende alerta

Presidente do órgão assinou três anulações desde outubro do ano passado; apenas 16 outros foram feitos desde 1940

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São Paulo

Três bens tiveram seus tombamentos cancelados pelo Iphan, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, desde outubro de 2021 e acenderam o alerta para conselheiros da instituição e especialistas do patrimônio, que consideram os processos irregulares.

Isso porque os três destombamentos, feitos nos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais, foram assinados pela própria presidente da instituição, Larissa Peixoto —que é cotada para assumir a Secretaria Especial da Cultura numa eventual saída de Mario Frias. A lei que regula esse processo, criada na era Vargas, determina que o presidente da República pode assinar esse cancelamento.

Carolina Pedro Soares, historiadora e especialista em gestão e políticas culturais que estuda os processos de destombamentos no Brasil, afirma que um ministro da Cultura, ao qual o Iphan seria subordinado, também poderia cancelar um tombamento, ou que o processo poderia ser feito ainda com consulta ao conselho consultivo do órgão.

Imagem de palácio em ruínas no centro do Rio
O Solar Visconde de São Lourenço, no Rio de Janeiro; local teve seu tombamento cancelado pela presidente do Iphan, mas Justiça suspendeu o destombamento - Reprodução/Street View Google

Nada disso foi cumprido nesses três casos, e um dos destombamentos, o do Solar Visconde de São Lourenço, no Rio de Janeiro, já foi inclusive suspenso pela Justiça após pedido do procurador Sergio Suiama, do Ministério Público Federal.

Ele afirma que o Iphan já chegou a requerer manutenção do espaço, o que seria incompatível com o atual pedido de cancelamento. "Trata-se, portanto, de flagrante ilegalidade do ato de destombamento, promovido de forma unilateral pelo Iphan e sem comunicar o juízo ou as partes desta demanda, em manifesta litigância de má-fé pela conduta, no mínimo, temerária", afirma.​

Tombamentos, assim como os registros de bens imateriais, são as mais importantes formas de preservação do patrimônio do país. O Iphan tem em sua lista de bens tombados e registrados, por exemplo, o Teatro Oficina, em São Paulo, o centro histórico de Salvador, do Rio de Janeiro e de Ouro Preto, em Minas Gerais, entre outras cidades históricas, e acervos como o do Museu Lasar Segall, em São Paulo, e o Museu Nacional de Belas Artes, no Rio.

Tombar um imóvel e seu entorno pode atravancar o avanço de projetos imobiliários —restrição contra a qual o próprio presidente Jair Bolsonaro já se posicionou.

Além da assinatura considerada ilegal, outras duas questões chamaram a atenção de Soares e de outros especialistas. Primeiro, a velocidade com que os destombamentos foram feitos.

No caso da igreja de Itabirito, em Minas Gerais, foi aberto um processo em 2018 para discutir a preservação de ruínas da região. Já a fazenda Nossa Senhora da Conceição, em Paraty, no litoral fluminense, foi objeto de um pedido de vistoria em 2020. Essa velocidade de execução, segundo Soares, "é um tanto escandalosa".

A segunda preocupação é com o próprio volume de destombamentos. De 1940 para cá, foram feitos 16 cancelamentos desses registros, segundo a listagem de patrimônios do próprio Iphan.

Com exceção de uma casa na avenida Rosa e Silva, no Recife, cuja data de destombamento não foi encontrada num levantamento feito por Carolina Pedro Soares, apenas um dos cancelamentos foi feito no período de redemocratização —a igreja de Tambaú, em Cabedelo, na Paraíba, em 1989.

Os três locais que tiveram seus tombamentos cancelados pela presidente do Iphan têm perfis distintos. Soares avalia que os dois primeiros destombamentos —de Itabirito e Paraty— podem ter sido feitos para testar as águas em regiões mais afastadas dos centros urbanos para checar se o destombamento feito diretamente pela presidente teria algum tipo de repercussão. Ambos, aliás, foram feitos no mesmo dia, em outubro de 2021.

Não havendo nenhum alarde, seria possível avançar para áreas com mais visibilidades, como o Solar Visconde de São Lourenço, o palacete localizado na esquina da rua Riachuelo com a rua dos Inválidos, na Lapa, no Rio.

É comum aos três processos, no entanto, a justificativa da ausência da materialidade —ou seja, de que não resta ali uma edificação preservada. Segundo especialistas, a justificativa do destombamento também não procede.

Primeiro porque, afirma Soares, o que regula cancelar o tombamento de um bem é atender a um interesse público —o que não aconteceu nesses três casos. Além disso, ainda há o que ser preservado nas edificações.

"A informação técnica e os argumentos no processo do Solar Visconde de São Lourenço não procedem de jeito nenhum", afirma José Pessoa, professor da Universidade Federal Fluminense que trabalhou no Iphan e acompanha a história de registro do bem há anos.

"O edifício perfeitamente pode ser objeto de reconstrução, não só por ter uma série de levantamentos e arquivos do Iphan sobre ele, mas também pelo fato de que a maior parte da fachada ainda está lá, inteira", diz ele.

O Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio Cultural Brasileiro, criado em 2019, também publicou uma nota em que afirma que "não há justificativa cabível para o destombamento e demolição deste imóvel" e que se manifesta "com preocupação e repúdio aos processos irregulares de destombamento e demolição de bens em território nacional".

A instituição ainda afirma que uma denúncia de demolição ilegal do palacete em 13 de fevereiro prova a materialidade do bem. Procurado, o Iphan não respondeu à reportagem.

Os três casos de destombamento e a crise generalizada pela qual o Iphan passa deflagraram ainda uma discussão entre o conselho consultivo do patrimônio cultural da instituição e a diretoria.

O grupo da área consultiva já havia pedido em documento escrito em janeiro uma reunião com a presidente para debater uma série de pontos que entendiam como um desmonte e perseguição dentro do órgão. Agora, os representantes enviaram um novo requerimento para que se suspendesse o cancelamento do tombamento do prédio no Rio, com uma lista de justificativas para que o bem permanecesse tombado.

A presidente e a diretoria do Iphan se manifestaram no último dia 19 afirmando que "receberam com surpresa" a primeira manifestação do conselho e que ficaram impactados com "a leitura de palavras tão duras que ferem não somente nosso brio, como também a dignidade dos nossos servidores".

Eles argumentam que a gestão atual retomou as reuniões com o grupo consultivo e que tem firmado compromisso com o patrimônio, entre outras justificativas. O conselho consultivo enviou ainda uma tréplica, em que afirma ter havido "um mal-entendido" e que lamentam "que uma atitude de respeito à missão do Instituto seja considerada desrespeitosa".

IPHAN SOB BOLSONARO

Um alvo constante de críticas do governo de Jair Bolsonaro desde o começo de sua gestão, o Iphan vive uma crise generalizada.

Depois da paralisação do conselho consultivo por quase dois anos e da troca de funcionários do alto escalão, a instituição agora vê o reflexo disso numa série de medidas que podem tornar a principal entidade de preservação do patrimônio cultural do país num órgão-fantoche dos bolsonaristas.

Segundo especialistas que trabalham com patrimônio, esse é um desmantelamento inédito, que não se viu nem em períodos autoritários no Brasil.

Aprovação expressa de licenciamento ambiental, distribuição de cargos-chave para aliados do governo, diminuição do orçamento e paralisação do mestrado são algumas das situações que vêm abalando o instituto.


Os bens com tombamentos cancelados e os anos dos destombamentos

  • Conjunto Arquitetônico e Urbanístico de São João Marcos, Itaverá, cidade de São João Marcos, em Rio Claro, em 1940
  • Igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Porto Alegre, em 1941
  • Igreja de São Pedro dos Clérigos, na rua São Pedro, 91, esquina com a rua Ourives, no Rio de Janeiro, em 1943
  • Igreja Bom Jesus Calvário, no Rio de Janeiro, em 1943
  • Campo de Sant'Anna, no Rio de Janeiro, em 1943
  • Casa à rua Carlos Gomes, 26, em Salvador, em 1943
  • Igreja de São Gonçalo, em São Paulo, em 1952
  • Forte do Buraco, no Recife, em 1955
  • Solar à rua Visconde do Rio Branco, 18, em Salvador, em 1957
  • Palacete Durchisch, no Rio de Janeiro, em 1957
  • Casa do Coronel, na Roça do Argolo, em Salvador, em 1957
  • Edifício da antiga Santa Casa de Campos e Igreja contígua de Nossa Senhora Mãe dos Homens, em Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, em 1961
  • Pico de Itabira, conjunto paisagístico e pico do Itabirito, em Itabirito, em Minas Gerais, em 1965

  • Igreja do Bom Jesus dos Martírios, no Recife, em 1972
  • Igreja de Tambaú, ruínas, em Cabedelo, na Paraíba, em 1989
  • Igreja de São Vicente, em Itabirito, em Minas Gerais, em 2021
  • Fazenda de Nossa Senhora da Conceição, em Paraty, no Rio de Janeiro, em 2021
  • Casa à avenida Rosa e Silva, 36, no Recife (data desconhecida)

Dados: Iphan

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