Descrição de chapéu Independência, 200

Governo Bolsonaro luta por visão da independência que é risível, dizem historiadores

Campanha comemorativa dos 200 anos traz narrativas monarquistas e visões distorcidas do evento

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 Quadro 'Independência ou Morte', de 1988, feito por Pedro Américo, em exposição no eixo monumental do Museu do Ipiranga

Quadro 'Independência ou Morte', de 1888, feito por Pedro Américo, em exposição no eixo monumental do Museu do Ipiranga Divulgação

São Paulo

"Um jovem príncipe, do alto de seu cavalo, ergueu sua espada. Refletindo nela a luz do sol, ao som das águas do Ipiranga, ecoou a voz em forte grito. Pela força de sua coragem, derrotou os que nos aprisionavam. Com a ousadia de sua afronta, fez soberana a nossa nação", diz a campanha oficial do governo federal, lançada pela Secretaria Especial da Cultura, para as celebrações do bicentenário da independência neste Sete de Setembro.

Fosse uma prova na Olimpíada Nacional em História do Brasil, o texto não passaria pelo crivo dos avaliadores. Isso porque a narrativa ao redor do jovem príncipe, dom Pedro 1º, do alto de seu cavalo é fictícia – "quase risível", nas palavras da historiadora Cristina Meneguello, professora da Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp, e coordenadora da olimpíada, competição de conhecimento histórico realizada desde 2009.

Na edição do ano passado do evento, conta a historiadora, diversas equipes de estudantes elaboraram projetos de exposições para suas escolas sobre o processo de independência, detalhando análises e artes, inclusive a desconstrução do famoso quadro "Independência ou Morte", de Pedro Américo, datado de 1888.

Na campanha federal, a pintura imortaliza o "grito da Independência" de dom Pedro 1º empunhando a espada e, por isso, foi escolhido como símbolo oficial do bicentenário o "punho" do príncipe português que se tornaria o primeiro imperador dessa terra brasilis.

"O gesto foi o marco inicial da liberdade do Brasil perante intervenções estrangeiras, se tornando então independente e soberano. Como símbolo, remete naturalmente à bravura da cena, inspirando a coragem e o orgulho patriótico", afirma o texto.

Mas faltou combinar com os fatos. "A cena é fictícia, mitológica. Só aconteceu na cabeça de Pedro Américo, que, a propósito, reconheceu ter se ‘inspirado’ na pintura de Jean-Louis Ernest Meissonier, ‘Napoleão 3º na Batalha de Solferino’, de 1863 —alguns falam em plágio puro e simples", conta o historiador Jurandir Malerba, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor do recém-lançado "Almanaque do Brasil nos Tempos da Independência", pela editora Ática.

Ele acrescenta que uma outra pintura do mesmo Meissonier também dialoga diretamente com o brado do Ipiranga, "1807, Friedland" —as duas são muito semelhantes imageticamente.

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'Napoleão 3º na Batalha de Solferino', pintura de Jean-Louis Ernest Meissonier, de 1863 - Reprodução

A narrativa não faz sentido nem do ponto de vista histórico, nem ideológico, diz o acadêmico. "Ideologicamente, até na acepção mais simplória de ‘ruptura política’ que se atribui à independência, se torna sem sentido resgatar a figura do príncipe português como ‘herói’ da separação entre Brasil e Portugal."

A independência teve revoltas e guerras que se prolongaram ao menos até 1825. "O que me espanta é a glorificação do herói único que essa escolha simboliza —um punho que segura a espada apaga a mobilização popular, as inúmeras insurreições, os interesses díspares e, principalmente, apaga que esse processo foi longo e violento, criando um herói bondoso que jamais existiu", assinala Meneguello.

O texto faz menções a honra, orgulho patriótico e valores religiosos. A impressão, nas palavras de Meneguello, é que a iniciativa foi redigida "por um memorialista ressurgido da tumba".

Não foi a única vez que o governo federal tropeçou nos fatos da época. No "Memorial da Soberania", que também integra a campanha do bicentenário, o encontro entre indígenas e portugueses foi retratado como "amigável" —o genocídio dos povos originários pelos colonizadores deve ser mero detalhe nessa narrativa.

Na campanha oficial, as artes têm uma versão estilizada da Cruz da Ordem de Cristo, "por ser um símbolo presente de forma constante na identidade brasileira desde o início de sua história até hoje e por representar os valores religiosos em que os brasileiros se fundamentam", diz o texto. Nem ontem, nem hoje é possível dizer que a cruz representa "os valores religiosos em que os brasileiros se fundamentam" —basta lembrar as religiões de matriz indígena e africana.

A Ordem de Cristo, conjunto religioso e militar, financiou navegações e conquistas dos colonizadores. Escolher esse símbolo, analisa Meneguello, especialista em cultura visual, exclui outras fés e pinta como positiva a violência colonial contra os povos originários e os povos escravizados.

"É um achincalhe à nação. As cruzes de cavalaria como a de Cristo, a de Malta, a de Ferro, todas têm a mesma procedência —são símbolos que remetem às cruzadas cristãs contra os ‘pagãos’ mundo afora. Remetem a uma ideia de sociedade estamental, com um corpo de guerreiros cuja missão é difundir seus valores, até pela guerra. Não à toa, a Cruz de Ferro é um dos símbolos nazistas mais fortes", critica Malerba.

Historiadores também atacam a campanha oficial por trazer uma visão ultrapassada, ufanista e incorreta do que foi a independência, com matizes monarquistas e um tom conservador que lembra o discurso da classe senhorial e das elites letradas do século 19.

Segundo Malerba, a iniciativa "reitera preconceitos e concepções de história que só encontram justificativa na construção de um passado inventado, mitológico, sem qualquer lastro de fiabilidade sob qualquer critério científico".

Também se critica a ausência, até agora, de uma agenda cultural oficial, com congressos, editais, exposições que fomentem discussões sobre o marco de 1822 e o que a efeméride representa para o Brasil de 2022 —para dar um exemplo, a herança histórica da escravidão que é visível até os dias atuais. Quem tem tomado a frente para organizar uma agenda paralela foi a sociedade civil e as universidades, ao lado de instituições como a Associação Nacional de História e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.

De acordo com Meneguello, a professora da Unicamp, a difusão de inverdades históricas, inclusive por integrantes do atual governo, contribui para a desinformação da sociedade. "Um povo que se vê privado de entender sua própria história é um povo frágil, que está muito longe de constituir uma nação soberana."

Soberania, segundo a campanha do bicentenário, é liberdade —mas uma ideia confusa de liberdade que invoca virtudes, vontade e "conhecimento do bem" como se tudo se limitasse à esfera particular, de foro íntimo, e não a uma nação. "O brasileiro quer se manter livre. Quer preservar a independência de seus valores, a soberania de seu lar, a liberdade de educar seus filhos", diz um trecho.

A reportagem procurou a assessoria da Secretaria Especial de Comunicação Social do governo federal e foi encaminhada à Secretaria Especial da Cultura. Esta, por sua vez, não respondeu os pedidos de informação —entre eles, um indagava se há historiadores participando da campanha da efeméride histórica.

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