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Mussolini fica fascinante até demais no livro 'M: O Homem da Providência'

Sequência de 'O Filho do Século' mergulha na humanidade às vezes banal do Duce e seu entorno no auge do fascismo

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M: O Homem da Providência

  • Preço R$ 99,90 (649 págs.); R$ 69,90 (ebook)
  • Autoria Antonio Scurati
  • Editora Intrínseca
  • Tradução Marcello Lino

Em um dos momentos mais assustadores de "M: O Homem da Providência", segundo volume da biografia romanceada do ditador italiano Benito Mussolini, um deputado fascista resume o significado dos regimes totalitários, sem perceber a ironia do que está dizendo.

"Eu nego que exista uma oposição", diz Carlo Delcroix, herói da Primeira Guerra Mundial, na qual perdera a vista e ambas as mãos recolhendo granadas que pareciam não ter detonado. "Não pode haver oposição em um período revolucionário."

O ditador italiano Benito Mussolini (1883-1945) faz a saudação fascista em fotografia de circa 1935 - Popperfoto/Getty Images

Nessa mesma sessão do Parlamento italiano, datada de 9 de novembro de 1926, um total de 124 deputados eleitos acabaram sendo sumariamente expulsos e a pena de morte foi reinstituída no país.

A Itália tinha sido o primeiro país europeu a abolir a sentença. Gritos de dor chegam ao plenário quando a sessão termina —vêm de Giacomo Scotti, um dos 12 parlamentares que tinham votado contra a medida, espancado por seus colegas fascistas.

Tal como se vê no volume anterior da série, chamado "M: O Filho do Século", o novo romance histórico do napolitano Antonio Scurati se apoia num levantamento documental feito de forma quase obsessiva.

Todos os capítulos são precedidos de dois ou mais trechos extraídos de documentos originais dos anos 1920 e 1930, entre cartas, relatórios do governo, reportagens de jornais ou até escutas telefônicas —falamos, é claro, de um momento no qual o grampo policial não deixa passar nada. Em geral, os diálogos funcionam como variações ou ecos dessa documentação.

homem branco de cabelo grisalho e camisa branca
O escritor italiano Antonio Scurati, autor de série de biografias romanceadas do ditador fascista Benito Mussolini - Greta Stella/Divulgação

Depois de mostrar a ascensão de Mussolini ao poder, Scurati narra agora a consolidação e o auge do regime fascista, de 1925 a 1932. Depois de se recuperar de problemas de saúde e da crise política gerada pelo assassinato do parlamentar socialista Giacomo Matteotti, Mussolini passa a atuar em duas frentes, com a ajuda de seu braço direito Augusto Turati.

De um lado, todos os resquícios das antigas liberdades democráticas italianas vão sendo removidos de forma lenta, segura e gradual. As pessoas ainda elegem parlamentares, mas a lista dos candidatos é formulada pela chefia do Partido Fascista –ou seja, na prática, depende única e exclusivamente de Mussolini.

Ao mesmo tempo em que mutila a democracia italiana, o ditador, paradoxalmente, se põe a castrar o próprio fascismo. Não existe mais "camaradagem revolucionária" com os escalões mais baixos do partido, nem debates sobre o melhor rumo a seguir. Agora, ele fala e todos devem obedecer sem maiores discussões –ou, como dizia a propaganda do regime, "Mussolini ha sempre ragione", ou Mussolini tem sempre razão.

Esse processo de domesticação dos impulsos mais primários do fascismo inclui também cortar pela raiz os pequenos e constantes atos de violência contra opositores ou simples não simpatizantes da ideologia totalitária. Ao menos aqueles cometidos pela base de militantes, formada principalmente por veteranos de guerra, membros da classe média baixa urbana e criminosos pé-de-chinelo.

Essas formas mais anárquicas de violência podem ter sido úteis no passado para criar o clima de medo necessário para a tomada do poder, mas agora atrapalham a respeitabilidade e a eficiência do regime, decide Mussolini.

No lugar das antigas pancadarias entra um monitoramento muito mais insidioso e permanente da vida privada dos cidadãos, do tipo que não hesita em arrastar diante do Tribunal Especial para a Defesa do Estado o pedreiro Cataldo D’Oria, cujo delito foi resmungar "desgraçado, ninguém ainda matou esse catinguento!" ao saber que Mussolini tinha saído ileso de mais um atentado.

Segundo Turati, principal arquiteto dessa simbiose cada vez mais intensa entre ideologia autoritária e Estado, o essencial era fazer com que o fascismo estivesse entranhado em todos os aspectos da vida italiana, controlando a economia, sendo patrono dos esportes, moldando a cultura, a educação e até a geração de filhos.

Obcecado com o aparente declínio demográfico da Itália, Mussolini queria que a população do país tivesse um acréscimo de 1 milhão de habitantes por ano até a metade do século 20.

Scurati mescla com habilidade a documentação histórica, os fatos públicos e notórios, com a investigação psicológica dos mandarins do fascismo e de seus opositores —a essa altura, pouquíssimos, desorientados e contra a parede.

O resultado tem fascínio inegável. Talvez até fascínio demais, quando se leva em conta o que sabemos hoje sobre o desfecho do regime do "Duce", ou "líder", apelido que seria adotado pela grande maioria dos italianos para designar o ditador.

Ao mergulhar na humanidade às vezes banal desses personagens, falando de suas dores de estômago, de seus maneirismos e do ciúme que tinham de suas amantes, o escritor não estaria abrindo a possibilidade de atenuar ou desculpar os horrores que perpetraram?

O risco sempre existe, mas a capacidade de humanizar até os piores monstros é justamente o inverso do fascismo.

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