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Natalia Ginzburg, de 'Léxico Familiar', narra levante fascista em livro

Romance 'Caro Michele' se estrutura a partir de cartas que retratam a turbulência política na Itália

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Iara Machado Pinheiro

Crítica literária e pesquisadora na Universidade de São Paulo

Caro Michele

  • Preço R$ 54,90 (200 págs.); R$ 34,90 (ebook)
  • Autor Natalia Ginzburg
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Homero Freitas de Andrade

Parte epistolar, parte em narração onisciente, a forma de “Caro Michele” é como o núcleo protagonista do romance —fragmentada mas não dispersa, resta uma cola familiar de tímida tenacidade que une os pedaços esparsos pelo cenário.

No romance de 1973, Natalia Ginzburg insiste em seu recorte habitual, a casa e o ritmo cotidiano da existência, mas sob os efeitos dos solavancos sofridos pela estrutura doméstica.

A casa interessa a Ginzburg sobretudo como uma matriz de convívio, um lugar onde aprendemos a cultivar a solidão e os desejos, esbarrando a todo tempo nos limites alheios. O seu estilo de narrar é marcado pela dissolução da peculiaridade em prol do que concerne profundamente à condição humana.

Mesmo no romance memorialista “Léxico Familiar”, de 1963, tido como a obra-prima da escritora, a especificidade da história de sua família ao longo dos anos do fascismo se mistura a um tratamento da lembrança que destaca a potência das palavras em guardar determinada forma de estar no mundo.

capa de livro
Capa de 'Caro Michele', da escritora italiana Natalia Ginzburg, publicado no Brasil pela Companhia das Letras - Reprodução

“Caro Michele” narra a trajetória de uma família sem deixar de ser uma história sobre os laços humanos num momento em que as paredes domésticas não têm mais consistência. Embora a rotina dos protagonistas seja atravessada por perdas, existe uma contrapressão que torna o adjetivo melancólico impreciso para descrever o livro.

Enquanto um discreto humor fura a tristeza enunciada nas cartas, alguns personagens oferecem um contraponto ao desolamento, por meio de uma encantadora inconveniência ou uma silenciosa cumplicidade.

Michele é um jovem que deixa a Itália sem maiores explicações. A partida é um golpe duro para a sua mãe, Adriana. Ao redor da família, orbitam dois personagens estranhos e carismáticos, cada um à sua maneira —Osvaldo, um amigo e possível amante de Michele, e Mara, mãe de um bebê que poderia ser do rapaz.

A ausência central provoca encontros entre diferentes segmentos da vida de Michele, o que não ocorria quando ele vivia na Itália, ecoando uma frase presente numa das cartas de Osvaldo, “todos nós vivemos de substitutos”.

Do lado de dentro, então, uma família cindida, cheia de silêncios, cujos membros se encontram mediados por intransponíveis distâncias, físicas ou intangíveis. Do lado de fora, passeatas movimentam as ruas e jovens são esmurrados e assassinados por fascistas. Valeria mencionar que a década de 1970 foi bastante turbulenta na Itália, caracterizada pelo ressurgimento de movimentos radicais.

O romance, no entanto, se basta. Por meio dos acontecimentos determinantes do enredo e de alguns detalhes de composição –metralhadoras enferrujadas ou chinelos desbeiçados—, notamos um passado pesado, que parece subtrair do equilíbrio do tempo uma abertura para o futuro.

A inviabilidade do amanhã fica insinuada nas formas de viver dos jovens, vagando de um lado para o outro, num clima de desorientação que contamina até os mais adaptados à vida convencional.

Em meio à sensação de deriva, as cartas surgem como superfícies capazes de redimensionar o peso do passado, abrigando lembranças que aliviam a indeterminação e oferecem fragmentos de vida com a força de reafirmar laços familiares e de amizade.

Numa carta de Adriana endereçada ao filho, as palavras “estranho alívio” aparecem para comentar as visitas diárias de Osvaldo. Ela não entende por que aquele homem atravessa a cidade para ficar em silêncio ao seu lado, mas se habitua e se sente tranquila por encontrar uma folga da solidão nesse vínculo incomum —uma paz momentânea oferecida por um simples encontro quando tudo vai mal.

No posfácio da edição, Vilma Arêas nota uma felicidade misturada ao escombro em “Caro Michele”. É como se o romance de Ginzburg tensionasse um mundo em ruínas, ainda sem sinal de novos alicerces, com o imperativo de seguir em frente, tentando não tropeçar demais no entulho pelo caminho.

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