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Almodóvar e Penélope Cruz em 'Mães Paralelas' reabrem as velhas feridas da Espanha

Estrelado pela atriz, filme aplaudido em Veneza é mais um do cineasta espanhol a se debruçar sobre a maternidade

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Cartaz do filme 'Mães Paralelas', de Pedro Almodóvar

Detalhe do cartaz do filme 'Mães Paralelas', de Pedro Almodóvar Reprodução

São Paulo

Quando Pedro Almodóvar nasceu, a ditadura de Francisco Franco já governava a Espanha havia uma década. Foi sob a sombra do regime fascista, de forte teor católico e que se estendeu até 1975, que o cineasta se descobriu ateu, homossexual e de esquerda, além de ter aprendido a venerar as figuras femininas de sua vida.

Ele enfrenta agora as cicatrizes deixadas pelo franquismo em sua Espanha natal, num dos filmes mais políticos de sua celebrada carreira, "Mães Paralelas". Produzido pela companhia que Almodóvar fundou ao lado do irmão, a El Deseo, o longa tem distribuição da Netflix na América Latina, mas antes de chegar ao streaming ganha sessões especiais no cinema.

"Esse é um tema que ainda não está resolvido. Ainda temos gente enterrada em valas comuns e mais de 100 mil desaparecidos", diz Almodóvar, sobre a ditadura franquista e a motivação por trás do novo trabalho.

"Nós reagimos muito tarde a esses crimes, então hoje esse é um tema muito quente e atual na Espanha. E há a metade do país que, assim como eu, quer pagar essa dívida e outra metade que não terá nenhuma reação ao meu filme, porque diz que ele serve apenas para abrir uma ferida. É um pensamento da direita, mas essa não é uma questão política, é humanitária. O que as famílias dos desaparecidos pedem é um lugar com o nome de seus entes, onde possam deixar flores."

Exibido no Festival de Veneza, onde foi recebido com aplausos, "Mães Paralelas" não é ambientado nos anos de franquismo, mas nos tempos atuais. A trama acompanha duas mulheres que se conhecem na maternidade e dão à luz no mesmo dia.

A primeira é Ana, personagem de Milena Smit, uma garota de 17 anos que atravessa uma gravidez envolta em traumas de paternidade –seja a do bebê ou a sua própria, já que foi há pouco rejeitada pelo pai. A segunda é Janis, uma fotógrafa que beira os 40 anos e é encarnada por Penélope Cruz.

Para ela, a maternidade é o efeito colateral de uma longa busca herdada de sua avó, que Almodóvar associa a uma "responsabilidade transgeracional" com os mortos pela ditadura. Contratada para fotografar um antropólogo forense, a personagem pergunta se ele poderia ajudar com a escavação de uma cova da era franquista, onde seu bisavô e outros desaparecidos de seu vilarejo estariam enterrados. Enquanto se debruçam sobre o caso, Janis e Arturo acabam se envolvendo.

No momento da concepção do bebê da personagem, a câmera percorre a fachada de um prédio até parar em frente a uma janela, de onde sai uma longa cortina branca que dança conforme o vento bate. Adentramos o quarto e vemos Janis nos braços de Arturo, seus gemidos de prazer se transformando em dor no instante seguinte, quando ela já ostenta um barrigão na maternidade –mas, nos sons de agora, ela está desacompanhada. Casado, o antropólogo se recusa a deixar a mulher para ficar com a amante, que então se vê sozinha com a criança.

Milena Smit, Pedro Almodóvar e Penélope Cruz no Festival de Veneza - Miguel Medina/AFP

Mas este é um filme livre de julgamentos, como toda a obra de Almodóvar. Seus personagens com frequência desafiam moralismos da nossa sociedade, são imperfeitos, mas nunca são retratados a partir de um olhar maniqueísta ou censor.

É o caso da transexual vivida por Gael García Bernal e que mente compulsivamente em "Má Educação", ou do fã obcecado e homicida que Antonio Banderas interpreta em "A Lei do Desejo". E da complexa trama de traições que envolve Javier Bardem e Francesca Neri em "Carne Trêmula".

Em "Mães Paralelas", as mentiras também movem a história, mas sem que se comprometa o carisma de sua autora, Janis. A fotógrafa, que quer desesperadamente descobrir a verdade sobre seus ancestrais, soterrada naquela vala, é a mesma que ignora a verdade inconveniente sobre sua filha, numa reviravolta imaginável, mas nem por isso menos impactante.

Essa hipocrisia contamina a relação de Janis e Ana, também marcada por um conflito geracional –de um lado, a fotógrafa quer recuperar a memória de todo um país, enquanto, de outro, a jovem pouco sabe sobre a ditadura franquista.

Almodóvar diz que a ideia não era ser um "professor", ensinar às novas gerações, que ele diz estarem, também com razão, mais preocupadas com a crise do clima ou com questões de gênero. Mas o cineasta observa uma ascensão de ideias de direita hoje, não só na Espanha, e destaca que é preciso reagir e jogar luz sobre os horrores do autoritarismo.

Afeito aos melodramas novelescos e a personagens sempre complexos, Almodóvar pincelou "Mães Paralelas" com as habituais cores quentes e fortes de seus filmes –há vermelhos nos armários da cozinha, na capinha de celular, nas almofadas, no carrinho de bebê e no guarda-roupas de Janis, que veste uma camiseta nesse tom enquanto desliza sedutoramente um pincel pelas bochechas.

É uma amostra da sexualidade pulsante da protagonista, criada por um cineasta que tem na maternidade um dos temas mais recorrentes de sua obra. Reflexo de uma infância rodeada por mulheres, diz ele, que até os dez anos escutava num silêncio atento as conversas sobre o universo feminino que o rodeavam.

"Isso me encantava. Ouvir essas conversas era um espetáculo, era a origem da ficção que eu criaria, mesmo que tudo aquilo fosse verdade, porque me pôs em contato com as coisas mais terríveis e as mais maravilhosas. Elas eram de uma geração que viveu coisas horríveis na Espanha, no pós-Guerra, mas que reergueu o país."

Ele reconhece que as mulheres de "Mães Paralelas" pertencem a um ambiente urbano, são todas mães solo, o que as distancia de suas inspirações pessoais e também de várias outras personagens femininas que concebeu, mas se mostra empolgado por ter abordado no novo filme algo incomum em sua obra –uma personagem sem instinto materno, que abandona a filha para trilhar a carreira de atriz.

O dito "instinto materno", termo sob ataques no presente feminista em que vivemos, parece estar no elenco de "Mães Paralelas". Sentada ao lado de Almodóvar, Penélope Cruz se despede pouco após o início da rodada de perguntas dos jornalistas que os sabatinam virtualmente. "Tenho de cuidar de um problema justamente com a minha filha", se desculpa a atriz.

Penélope Cruz com a taça Volpi de melhor atriz no Festival de Veneza - Filippo Monteforte/AFP

Pelo papel em "Mães Paralelas", Cruz recebeu a taça Volpi no Festival de Veneza e gerou expectativa para o Oscar. Esta é sua sétima colaboração com Almodóvar, que garantiu a ela sua primeira indicação à estatueta hollywoodiana, com "Volver" –a vitória veio depois, no "Vicky Cristina Barcelona" de Woody Allen.

"Eu sou uma pessoa muito família", diz Cruz, que tem dois filhos com o ator Javier Bardem. "O que eu gosto muito nesse roteiro é que o Pedro [Almodóvar] tratou a maternidade a partir de diferentes ângulos. Há três formas de como encarar a maternidade em ‘Mães Paralelas’, e isso foi feito sem julgamentos."

"E eu me identifico muito com ele, não só por ser sua amiga e por trabalhar com ele há anos", diz a espanhola, atenciosa mas aflita para responder ao chamado dos filhos. "Mas também enquanto espectadora, porque parece impossível para o Pedro julgar seus personagens, pôr etiquetas neles."

Mães Paralelas

  • Quando Estreia nos cinemas nesta quinta (3) e na Netflix em 18/2
  • Classificação 14 anos
  • Elenco Penélope Cruz, Milena Smit e Rossy de Palma
  • Produção Espanha, 2021
  • Direção Pedro Almodóvar
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