Descrição de chapéu Governo Bolsonaro

Como ideias fascistas da década de 1930 permanecem vivas na era Bolsonaro

Para autores de novo livro, princípios do integralismo se enraizaram no imaginário político do país

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Eduardo Sombini

Geógrafo e mestre pela Unicamp, é repórter da Ilustríssima

[RESUMO] Em entrevista, autores de livro sobre a história do integralismo, que será lançado na próxima terça-feira (14), discutem a persistência de práticas fascistas na cultura política nacional desde a experiência da Ação Integralista Brasileira nos anos 1930, mas fazem ressalvas a análises que tratam o bolsonarismo como mera continuidade do movimento de Plínio Salgado.

Convidado a escrever o prefácio de um livro pioneiro das ciências sociais sobre o movimento integralista brasileiro, Florestan Fernandes anotou que considerava a tarefa penosa, mesmo ressaltando a qualidade da obra.

“O que me põe de quarentena é o assunto. Hoje está na moda dizer-se que se deve estudar o integralismo. Não compartilho dessa opinião”, escreveu o sociólogo na abertura de “Ideologia Curupira”, de Gilberto Vasconcellos, publicado em 1978. “O que nos coube, na ‘virada fascista’ da história recente, merece mais a novela picaresca que a investigação sociológica séria.”

Quatro décadas depois, o apelo por pesquisas das expressões contemporâneas da extrema direita continua na moda.

A ascensão da alt-right ao redor do mundo e a virada conservadora no Brasil pós-junho de 2013, que culminou na eleição de Jair Bolsonaro, fizeram os novos arranjos políticos e ideológicos da direita reverberar no debate público –e impulsionaram a busca por interpretações das raízes históricas dos valores autoritários do país.

O livro “O Fascismo em Camisas Verdes: do Integralismo ao Neointegralismo”, que a FGV Editora lança na próxima semana, vai de encontro, porém, à segunda afirmação de Florestan Fernandes. Os autores, Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto, professores de história da Universidade Federal de Juiz de Fora e pesquisadores da direita brasileira, produziram uma obra que enfrenta a aversão de parte da academia em analisar com rigor os grupos mais radicais da direita do país.

“Para estudar a direita e o movimento fascista e autoritário no século 20, é impossível não esbarrar no movimento integralista. Nos últimos tempos, percebemos a necessidade de produzir uma obra de fôlego, mas que saísse do universo acadêmico. A mola propulsora foi a radicalização de ações neointegralistas”, indica Leandro Pereira Gonçalves, autor de uma biografia de Plínio Salgado.

Salgado foi o fundador da AIB (Ação Integralista Brasileira), organização fascista que reuniu, de acordo com o livro, cerca de 200 mil seguidores em todo o país na década de 1930.

Gonçalves faz referência ao ataque com coquetéis molotov, na véspera de Natal de 2019, à produtora Porta dos Fundos, que havia lançado um especial que retratava um Jesus gay. A ação foi reivindicada por um grupo neointegralista, e Eduardo Fauzi, que assumiu a autoria do atentado, fugiu para a Rússia em seguida, um dia antes da sua prisão ser decretada. O mesmo grupo disse ter sido responsável pelo roubo e queima de faixas antifascistas na Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) em novembro de 2018.

A obra narra o desenrolar das ideias e das organizações integralistas por nove décadas, do encontro do chefe dos camisas-verdes com o ditador fascista Benito Mussolini em Roma, no verão de 1930, até o aparecimento de pichações em muros do Rio de Janeiro que exaltam Fauzi como herói.

O primeiro capítulo explora os antecedentes da formação da AIB e discute os fundamentos da ideologia moldada por Plínio Salgado, expressa no lema “Deus, pátria e família” —mote que a Aliança pelo Brasil, partido que Jair Bolsonaro tenta fundar, tomou de empréstimo em uma postagem no Twitter em novembro de 2019; o último termina com uma foto do consulado da China no Rio de Janeiro, com a pichação “vírus comunista” na fachada, já em tempos de pandemia de Covid-19.

Caldeira Neto afirma que o livro busca apresentar uma história das práticas fascistas no Brasil sem se restringir às instituições formais do movimento. “Muitas vezes, a história do integralismo e do fascismo no Brasil é entendida como um breve hiato entre 1932 e 1937, apenas cinco anos [de existência oficial da AIB]. Nossa ideia foi tentar estabelecer como as ideias e as organizações fascistas e neofascistas são de certa forma um continuum no Brasil republicano, em que há períodos de maior e de menor agitação.”

Para os autores, as ideias fascistas nunca desapareceram da paisagem política brasileira, mas mudaram de roupagem de acordo com as circunstâncias histórias. Nesse sentido, o prolongado declínio das organizações integralistas não deve ser interpretado como sinônimo de enfraquecimento das práticas fascistas no país.

“O integralismo, embora perca seu capital político ao longo da história, permanece como uma forma de substrato imutável em uma cultura política da direita autoritária brasileira”, argumenta o pesquisador.

O declínio do integralismo começa em 1937, com o golpe que instaurou o Estado Novo. O livro recompõe o apoio de Plínio Salgado à ditadura de Getúlio Vargas, motivado pela promessa do Ministério da Educação ao líder integralista, nunca cumprida.

A AIB não é poupada do fechamento dos partidos políticos e organizações sociais pelo regime autoritário, e os camisas-verdes se sentem traídos. Em 1938, invadem o Palácio Guanabara, residência oficial do presidente, e tentam depô-lo em um levante armado. No ano seguinte, Salgado é obrigado a se exilar, em Portugal, de onde só consegue voltar em 1945, com a redemocratização do Brasil.

Plínio Salgado em foto de 1955 - Acervo UH/Folhapress

Depois do exílio, Salgado aparece no livro como uma figura decadente, que deixa o país como chefe de um movimento de massas ascendente e, na volta aos trópicos, não consegue ser mais que um político sem expressão.

No país europeu, o chefe integralista se vê impedido de enunciar seu discurso mais explicitamente fascista e se aproxima da democracia cristã. No Brasil pós-Vargas, funda um partido que nunca conseguiu ser competitivo eleitoralmente e tenta construir uma imagem democrática, se distanciando do conjunto de símbolos que caracterizaram a AIB –o Anauê, a saudação com o braço direito levantado que lembra o gesto nazista, os uniformes verdes e o sigma grego, emblema do movimento que representa a simbiose dos membros.

Esse período demonstra, para os autores, a existência de ondas de aproximação e afastamento do integralismo das representações que compõem o núcleo do fascismo histórico.

Homens com braços direitos levantados ao redor de uma noiva
Casamento integralista - Acervo AIB/PRP-Delfos/PUCRS

“O integralismo, apesar de ter sido reinventado, não deixa de ser fascista. A base fascista está presente desde o seu início até os dias atuais”, defende Gonçalves. “Quando Plínio Salgado vai para Portugal e passa a desenvolver um discurso baseado na democracia cristã, que nada tem de democrática, o fascismo não deixa de existir. Os elementos do corporativismo, do militarismo, do anticomunismo, do antiliberalismo continuam presentes.”

O historiador argumenta que o próprio conceito de fascismo, ainda que objeto de controvérsias na academia, é maleável no decorrer do século 20. Por isso, em sua avaliação, não basta olhar para o modelo do fascismo histórico para avaliar os movimentos fascistas posteriores, sobretudo em países não europeus.

O fato de o próprio integralismo ter nascido como um movimento que combinou ideias do fascismo europeu a partir de particularidades da sociedade brasileira reforça esse argumento, de acordo com os autores. As concepções raciais do integralismo, por exemplo, se distanciavam da ideia eugenista de raça pura, presente no nazismo.

A exaltação de uma “raça brasileira”, relacionada à ideia de miscigenação no país e ao mito da democracia racial, era necessária para viabilizar o integralismo. Havia uma questão estratégica: “O integralismo vira um partido político, e o negro vota”, diz Gonçalves.

Questão parecida se colocava com a participação das mulheres: o integralismo incentivava a participação das blusas-verdes. “Havia tantas mulheres no movimento porque elas já podiam votar nos anos 1930 e, também, para levar o integralismo para os seus lares”, afirma o pesquisador.

O livro registra, por outro lado, os limites patriarcais claros do movimento: “As profissões tidas como permitidas às mulheres na estrutura interna integralista eram aquelas consideradas extensões do papel da mulher no lar, que resguardariam a feminilidade, o dom à maternidade, a sensibilidade feminina e a função da mulher para com o Estado: a de preparar e educar as futuras gerações da pátria”.

Em relação às questões raciais no integralismo, os autores ressaltam a proximidade dos camisas-verdes com a Frente Negra Brasileira e a presença de lideranças negras na AIB, como Dario de Bittencourt, primeiro chefe da organização no Rio Grande do Sul, e João Cândido, o “almirante negro”, líder da Revolta da Chibata de 1910. Isso não significa que “o negro ia ter vida fácil no integralismo ”, afirma o historiador. “O movimento era racista e pregava exclusões.”

Esse discurso racial, além de permitir que o movimento reafirmasse uma espécie de autonomia frente aos congêneres europeus, também foi usado para dissociar a imagem do integralismo do fascismo, depois da derrota do Eixo na Segunda Guerra Mundial: “O mito da democracia racial é utilizado em diversos momentos pelos integralistas em uma narrativa de afastamento da condição fascista. Eles diziam que não podiam estar associados ao nazismo porque tinham negros nas fileiras”, diz Caldeira Neto.

Plínio Salgado morre em 1975, na metade do livro, o que leva a uma mudança na narrativa. A ascensão e a queda do líder cristão e anticomunista cedem espaço para a fragmentação do neointegralismo, marcado pela coexistência de grupos com baixa capacidade de organização política que disputam as heranças ideológicas e políticas de Salgado. A radicalização começa a dar o tom de várias ações, como demonstra o envolvimento com skinheads e grupos neonazistas em São Paulo no final dos anos 1980.

As dinâmicas atuais do neointegralismo, que desaguam no ataque ao Porta dos Fundos, são tratadas no último capítulo, que registra uma renovação geracional e o surgimento de novas organizações, incluindo a maior delas, a FIB (Frente Integralista Brasileira), fundada em 2005, e a Acale (Associação Cívico Cultural Arcy Lopes Estrella), grupo nacionalista radical criado em 2017, em que Eduardo Fauzi atuava.

Gonçalves e Caldeira Neto sustentam que o clima de agitação política dos últimos anos impulsionou os contatos entre militantes de extrema direita, o que contribuiu para a consolidação de ideais integralistas na cultura política autoritária do país.

Esse processo pode ser visto na trajetória do anticomunismo, segundo Caldeira Neto: “O integralismo estabelece uma narrativa conspiracionista de denúncia que vai introjetar os valores integralistas nesse imaginário anticomunista brasileiro”. Bases da ideologia integralista, como a adoração à liderança e a defesa da extirpação do país de indivíduos vistos como indesejados se tornaram fundamentais para esse pensamento, diz.

Pichação feita por grupos neonazistas na rua Teodoro Sampaio, em São Paulo - Daigo Oliva - 27.set.2011/Folhapress

O resultado é que, embora os grupos que se qualificam como integralistas sejam pouco numerosos, há credenciais integralistas que se espalharam no imaginário político brasileiro. “É como se o integralismo transcendesse a organização dos grupos integralistas. O integralismo não cabe mais exclusivamente naqueles indivíduos que se enunciam integralistas.”

Além da maior circulação de ideias filiadas ao integralismo, os pesquisadores afirmam que os grupos atuais, ainda que numericamente pequenos, tendem a se radicalizar. “Desde a década de 1980, o neofascismo nunca esteve tão ativo, tão fragmentado em diversas tendências e tão articulado internacionalmente quanto na atualidade”, afirma Caldeira Neto.

A radicalização dos neointegralistas está relacionada, em sua avaliação, tanto às disputas internas de legitimidade quanto à busca por visibilidade em um contexto neofascista cada vez mais violento. “O próprio bolsonarismo passa por um processo de depuração, em que as tendências mais radicais têm proeminência.”

Para Gonçalves, “é necessário um sinal de alerta”. “Em muitos momentos do passado, o integralismo foi colocado à prova com base na chacota, como um movimento marginalizado, sem relevância, e se manteve apesar dos pesares”, diz.

O historiador afirma que a conjuntura atual cria um espaço fértil para o recrudescimento do neointegralismo. “Desde 2017 ou 2018, os grupos se sentem mais seguros para irem às ruas e agirem de forma violenta, já que vai existir uma espécie de respaldo em relação a esse tipo de ação. O que a gente pode esperar é um processo de maior radicalização.”

E, a partir da trajetória histórica do integralismo, o que é possível concluir sobre o pretenso caráter fascista do governo de Jair Bolsonaro?

Os pesquisadores preferem a cautela, evocando a dificuldade da historiografia analisar com precisão o tempo presente.

Caldeira Neto diz ver “credenciais do fascismo histórico no bolsonarismo”, como uma liderança personalista, carismática e autoritária, mas afirma que também há novidades, como a centralidade do individualismo, associada à teologia da prosperidade neopentecostal, muito distante da supressão do indivíduo em favor da nação na década de 1930. Existe, também, uma exaltação ao nacionalismo americano, que seria impensável para a militância dos tempos de Plínio Salgado.

“Eu não discordo de quem afirma que o bolsonarismo tem elementos aproximáveis do integralismo, porque de fato são muitos, mas acho que o bolsonarismo ainda é uma mixórdia de ideias da extrema direita brasileira e também de tendências internacionais.” Daí a possibilidade, em sua avaliação, de pensar o bolsonarismo a partir de traços do neoconservadorismo, sobretudo os relacionados à direita radical dos EUA.

Gonçalves concorda que é melhor esperar para ver quais rumos a base de apoio do presidente vai tomar. “Acho muito precoce tratar o bolsonarismo como continuidade do integralismo dos anos 1930. Existem símbolos, como o ‘Deus, pátria e família’, a defesa do nacionalismo, da radicalização, o episódio dos 300 [do Brasil]. Existem paralelismos, mas há muita oposição entre o ontem e o hoje.”

Lançamento

Terça-feira (14) às 18h no YouTube. Inscrições no site da FGV Editora

Debate com os autores e o jornalista Octavio Guedes

O Fascismo em Camisas Verdes: do Integralismo ao Neointegralismo

  • Preço R$ 40 (impresso, 208 págs.), R$ 28 (ebook)
  • Autor Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto
  • Editora FGV
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