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'Devir Cachorra' exalta a feminilidade dos corpos desviantes em manifesto

Itziar Ziga incorpora em seu ideal uma matilha subversiva, para quem feministas 'decentes e civilizadas' viram a cara

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Marilene Felinto

Escritora e tradutora, autora de “As Mulheres de Tijucopapo”. Email: textosfazendaria@gmail.com

Escolhi este livro pelo título – o que não deixa de ser um modo legítimo de abordagem: pensei que "Devir Cachorra" talvez tratasse de um tema intrigante no universo da sexualidade contemporânea. Queria entender os processos de "transição sexual" ou de "transgeneridade" tão comuns hoje.

Mas embora o texto da jornalista e escritora espanhola-basca Itziar Ziga, 48 anos, não trate exatamente do tema, traz muitos elementos para a compreensão desse revolucionário fenômeno de resistência ao hétero-patriarcado, à sexopolítica do capitalismo centrada na normalização das identidades sexuais em códigos de masculinidade e feminilidade.

mulher branca veste casaco de pompons verde e usa o cabelo com franja multicolorida
A jornalista e escritora basca Itziar Ziga, autora de 'Devir Cachorra' - @crocodilo_ed/Twitter/Reprodução

Ziga é uma militante feminista radical, que incorpora em seu ideal de feminismo uma "matilha" de "cachorras", as putas, as "piranhas de minissaia", as drag queens e drag kings, entre outras "feminilidades exaltadas e subversivas", para as quais as "feministas decentes e civilizadas" viram a cara.

"Devir Cachorra" é, portanto, um manifesto transfeminista que afirma a feminilidade dos ciborgues, dos corpos e comportamentos desviantes, em contraposição à feminilidade "princesinha" branca de "Sex and the City". É fundado na tradição da teoria queer de Judith Butler, que já discutia gênero em 1990, em seu "Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade".

As cachorras do livro são amigas/amigos de Ziga, entrevistadas pela autora ou citadas em depoimentos bombásticos, introduzidos por títulos ou subtítulos ousadamente curiosos: "Nos deixarmos levar, extraviar, devir...", "Hijabs e minissaias: tanto escândalo por tão pouco tecido", "Crianças Genderfucker", "Aprendizes de Caminhoneiras", "Desafiando a inspetora feminista que existe dentro de nós", "Ode à buceta de Annie Sprinkle", "Machões por um Dia" etc.

É da celebração da feminilidade dessa matilha diversa que trata o texto —em estilo desbocado, na "linguagem-cachorra" e transgressora da autora—, do sofrimento de mulheres e homens que precisam enfrentar a violência sexista e o feminicídio no percurso de construção de suas identidades sexuais e sociais.

"O corpo das mulheres (das bixas, das transgênero, das emigradas, de todas e todos nós que nascemos ou devimos servas da ordem patriarcal-capitalista) é um corpo sexualizado, é um corpo disponível e penetrável, o corpo da puta, como Paul B. Preciado observa em seu iluminado ‘Testo Junkie’", afirma Ziga.

Não é à toa que Ziga cita Paul B. Preciado, antes Beatriz, filósofa/filósofo espanhol e pensador das teorias queer e pós-queer que, junto com a também filósofa e cineasta francesa Virginie Despentes —e que já foram um casal de namoradas— escreve o prólogo de "Devir Cachorra".

Preciado, autor de "Manifesto Contrassexual" (2004), e Despentes, autora de "Teoria King Kong" (2006), consolidaram o pensamento sobre a formação das teorias queer, da relação destas com os feminismos e sobre a resistência à normalização das identidades sexuais como agentes de controle da vida.

Itziar Ziga cita constantemente esses dois nomes, reforçando com a ideia de uma "matilha" solidária entre sexualidades desviantes o conceito de multidão queer, ou "multidão de corpos" diversos, na descrição de Preciado: corpos transgêneros, homens sem pênis, ciborgues (a la Donna Haraway), "femmes butchs", bichas lesbianas etc.

Assim as prefaciadoras do livro descrevem Itziar Ziga e sua matilha: "Itziar Ziga é uma drag-bitch, uma cachorra travesti, uma biomulher capaz de produzir uma versão putona da feminilidade, não mais como artifício teatral (...), mas como estratégia de luta guerrilheira. (...) A matilha não é nem a comunidade nem o gueto, nem o partido político. Na matilha de cachorras não há lei de gênero, nem de identidade sexual (...). É uma máquina coletiva de foder, que serve para resistir e para inventar outras formas de prazer".

Itziar Ziga é autora também de "A Feliz e Violenta Vida de Maribel Ziga", de 2020 (recém publicado no Brasil pela N-1 Edições), relato autobiográfico dos maus-tratos que sua mãe sofria nas mãos de seu pai, e de como encontrou sua própria recuperação no ativismo feminista. Ziga vive em Barcelona, é colunista da revista "Parole de Queer" e milita em diferentes movimentos transfeministas.

Devir Cachorra

  • Preço R$ 54 (176 págs.)
  • Autor Itziar Ziga
  • Editora N-1 Edições e Crocodilo
  • Tradução Beatriz Regina Guimarães Barboza e Maria Barbara Florez
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