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Em 'Versions of Me', Anitta mostra que está entre os grandes

Cantora, que tem tudo, inclusive música, acerta em cheio quando se apoia na vasta produção musical latino-americana

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Os gringos sabem que Anitta é brasileira? Na era do streaming, pouco importa de onde vem o play, se de Honório Gurgel ou Miami. Para as contagens das paradas de sucesso o que vale é a somatória, o número frio. O recente primeiro lugar no ranking global do Spotify coroou a trajetória da cantora, que pode anotar sem modéstia "Larissa de Macedo Machado" na placa de primeira popstar global feita no Brasil. Mas os gringos sabem que Anitta é brasileira? O álbum "Versions of Me" vacila em dar alguma resposta à questão.

A dúvida soa irrelevante sob a perspectiva da indústria. Anitta hoje frequenta festas de Hollywood com a mesma desenvoltura com que marca presença no rol de artistas latino-americanos do pop global. Ela está ao lado de gente de peso, como Karol G e Bad Bunny —cujas origens também devem ser uma incógnita para gringos. A pergunta vem à tona, contudo, pela manifesta intenção da cantora carioca em se mostrar a brasileira, "the girl from Rio".

A cantora Anitta em imagem de divulgação de seu novo álbum, 'Versions of Me'
A cantora Anitta em imagem de divulgação de seu novo álbum, 'Versions of Me' - Marco Ovando/Divulgação

Em seu mais recente disco, Anitta mostra, sim, que está pronta para se manter entre os grandes dos mercados europeu e norte-americano. O lançamento em abril, às portas do verão no hemisfério norte, apenas confirmou os movimentos internacionalistas desempenhados desde "Kisses" (2019).

O circuito de entrevistas em talk-shows, a residência na Flórida e até um certo sotaque de Los Angeles imortalizado pelo filme "Valley Girl" ("As Patricinhas de Bervely Hills"): Anitta tem tudo, inclusive música.

A cantora acerta em cheio quando se apoia na vasta produção musical latino-americana, embora boa parte desse estofo já venha filtrado pela experiência norte-americana —neste caso, via imigração contínua nos Estados Unidos.

Em "Gata", Anitta duela com Chencho Corleone como uma reggaetonera de brio. Metade do histórico duo Plan B, o artista deixa espaço para que a brasileira conecte Jamaica e Porto Rico revisitando seu antigo sucesso "Guatauba" —rompido por uma espécie de baile funk caribenho ao fim da canção.

Essa verve panamericana segue em músicas como o hit de milhões "Envolver" e mesmo "Gimme Your Number", que recupera o mítico verso "para bailar la bamba". A faixa também ganha em personalidade pela presença de Ty Dolla $ign, rapper de alto escalão que acertou ao optar pelo "menos é mais" —ele só canta o refrão. É um trap adocicado, radiofônico, mas as linhas filtradas que emulam um tambor de aço dão um toque de identidade que não se escuta no trap genérico "Girl From Rio".

Anitta também se dá bem quando abocanha tendências do sul global. Junto do britânico Afro B, dono do hit "Drogba", a cantora faz seu próprio afrobeats em "Maria Elegante". Se não surge inovadora, a faixa tampouco deixará de frequentar as playlists do gênero.

Essa rota do Atlântico Negro, aliás, poderia ser mais explorada: o mercado de música da África anglófona tem se tornado um dos maiores silos de criatividade do mundo com gêneros que vão do amapiano ao gqom —com uma audiência fervorosa no norte global.

"Me Gusta" se sustenta nessa ideia à brasileira. Não por acaso a faixa tem ambos os pés fincados na música negra de Salvador, com ajuda do flow debochado de Cardi B. Primeiro e um dos melhores singles de Anitta desde seu último álbum, o pagodão arrochado produzido pelo baiano RDD ainda soa atual mesmo após uma pandemia de existência.

Esse frescor também se deve à facilidade com que Anitta joga em terra natal, especialmente brincando com funk. Ela o faz na rasteirinha com ares de lounge "Turn It Up" e também em "Faking Love", faixa que, apesar do título, é um funk sem tirar nem por —tanto que ganhou versão pisadinha pela cantora mirim Melody.

"Que Rabão", a única faixa em português do disco, brilha pela produção minimalista e sóbria de Papatinho. Tem tudo para ser uma nova "Vai Malandra", ainda que o adaptação das vozes do Mr. Catra soe maquinal e fora de tempo.

A via traçada pela artista tem rota brasileira, entradas latinas e tímidos atalhos africanos. E isso faria um disco assertivo dentro do ideal da Anitta tipo exportação. Mas "Versions of Me" é um álbum de gravadora grande, e para isso também vale a somatória, o número frio. É nesse afã que o álbum derrapa: ao querer abraçar o mercado norte-americano como um todo valendo-se de sonoridades que sobram por lá.

Faixas como "Love Me, Love Me" e "Ur Baby", por exemplo, dão vazão à faceta de artista vocal de Anitta. Embora não tenha uma voz ampla, ela sabe usar cabeça e tórax e articular notas. Ambas as canções, porém, parecem apenas preencher álbuns e playlists. Ao surfar na volta do rock e dos anos 80 ela também soa menos do que poderia.

"Boys Don't Cry" diverte pelo clipe, mas foi o single menos exitoso do álbum. A faixa homônima ao disco segue a cartilha oitentista com pontes ascendentes em direção a um refrão doce, mas não marca. "Love You" rima "blue" com "you".

Além da pressão motivada por uma major operando segundo os ditames do selvagem mercado norte-americano, parte do descompasso no disco se justifica por sua megalomania. O álbum reúne dúzias de colaboradores em um apanhado de volta ao mundo. Há britânicos, latinos, nórdicos e brasileiros, entre outros. Unidade não parece ser o objetivo de Anitta; mas a combinação que faz dela protagonista por vezes também a transforma em coadjuvante em uma indústria repleta de embalados.

Outro fator que ajuda a entender os deslizes de "Versions of Me" é a pressão que recai sobre uma pioneira. É um caminho tortuoso esse de Anitta, nem lá nem cá, em meio a uma cultura global que fagocita sons à velocidade da luz.

Nessa indústria totalizante —e às vezes totalitária, a julgar pelos fãs-clubes—, a artista tem de assumir várias identidades para chegar mais longe. E ela o faz em uma trajetória sui generis, que acerta quando vai de baixo para cima no mapa e erra no sentido inverso. Anitta pode emplacar um seguinte álbum ainda melhor se dominar esse jogo de espelhos dos gringos, as muitas versões da garota do Rio.

Versions of Me

  • Quando 2022
  • Onde Disponível nas plataformas de streaming
  • Autor Anitta
  • Produção Ryan Tedder
  • Gravadora Warner Records
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